Alchian, jogos evolucionários e racionalidade

Rodrigo Peñaloza
8 min readDec 12, 2023

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Um dos ramos mais instigantes da Teoria dos Jogos é o que se denomina por Evolutionary Game Theory. De acordo com Kenneth Arrow, a origem da teoria dos jogos evolucionários é o artigo seminal de Armen Alchian de 1950, “Uncertainty, Evolution, and Economic Theory” (Journal of Political Economy, 58). Na Newsletter da International Society for Institutional Economics, vol 3, n. 2, de 2001, Ken Arrow escreve sobre Armen Alchian:

“When I came to Stanford 6 years after he received his PhD there, he was already a legend — the best graduate student that the economics department had ever had. (…) What made Armen really famous was his paper in 1950 on evolution. His explanation of why rational behavior was a reasonable hypothesis was that irrational behavior gets eliminated. (…) There were a lot of discussion, I should say, in the literature at the time about irrational behavior. (…) It was in this controversy that Alchian’s paper appeared (…). Of course it gave rise to an enormous literature (…): evolutionay game theory. Every theoretical journal is full of articles on evolutionary game theory (…). But the point is, they all go back and refer directly or indirectly to Armen’s 1950 paper.”

Arrow continua listando alguns trabalhos de Alchian que ele considera fundamentais na Teoria Econômica, como o artigo de 1972 com Demsetz sobre direitos de propriedade nas firmas, publicado na American Economic Review, o qual Arrow diz ser o de maior impacto, além dos trabalhos com Benjamin Klein e Reuben Kessel sobre inflação.

É graças a esse paper que podemos dizer que nada na Teoria Econômica afirma que os indivíduos são racionais o tempo todo em todas as instâncias. Dito de modo claro, a Teoria não afirma que as firmas no mundo real maximizam lucros ou que os consumidores maximizam a utilidade. O que ela afirma há muito tempo é que a racionalidade é o resultado de um processo evolucionário de seleção: a natureza e o mercado eliminam aqueles que consistentemente expressam intransitividades sem rever suas preferências com os erros.

Com efeito, um dos aspectos da racionalidade é a revisão de erros de racionalidade. Para isso, é importante compreender que erros sistemáticos de racionalidade causam modificações no ambiente do indivíduo, as quais o prejudicam, caso contrário não seriam erros. Se colocar a mão no fogo não causasse dor, não seria um erro colocar a mão no fogo. A dor é uma modificação ambiental que incita o indivíduo à mudança. Esse aspecto da modificação do ambiente é algo que muitas pessoas, no afã de transformar a Economia Comportamental em munição para atacar o mainstream (como se aquela fosse a “superação” epistemológica desta), simplesmente desconsideram, seja por ignorância, seja por má-fé.

O argumento evolucionário original deve-se a Armen Alchian e a Teoria reconhece essa paternidade abertamente. Autores como Ken Binmore, Bob Aumann, Itzack Gilboa, David Schmeidler desde então aprofundam teoricamente esse argumento. O Center for the Study of Rationality (Hebrew University of Jerusalem), do qual Bob Aumann é membro, e a Tel-Aviv University têm uma forte linha de pesquisa na área.

Ken Binmore, em Rational Decisions, cap.1, conta uma anedota entre Leonard Savage e Maurice Allais, na qual Allais tenta derrubar a teoria da utilidade esperada de Savage perguntando a ele algo para o qual Savage dará a resposta errada, de onde Allais, tal como muitos que maliciosamente usam e abusam da economia comportamental para “atacar” o mainstream, tirará munição para criticar a racionalidade. A simplicidade da réplica de Savage às pretensões de Allais só não é maior que a imensa ironia nela embutida: “Agora eu sei que errei…”

“Pandora uses the theory of revealed preference normatively when she revises her attitudes to the world after discovering that her current attitudes would lead her to make choices in some situations that are inconsistent with the choices she would make in other situations. A famous example arose when Leonard Savage was entertained to dinner by the French economist Maurice Allais. Allais asked Savage how he would choose in some difficult-to-assess situations (section 3.5). When Savage gave inconsistent answers, Allais triumphantly declared that even Savage didn’t believe his own theory. Savage’s response was to say that he had made a mistake. Now that he understood that his initial snap responses to Allais’ questions had proved to generate inconsistencies, he would revise his planned choices until they became consistent. One doesn’t need to dine with Nobel laureates in Paris to encounter situations in which people use their rationality in revising snap judgments. I sometimes ask finance experts whether they prefer 96 × 69 dollars to 87×78 dollars. If given no time to think, most say the former. But when it is pointed out that 96 × 69 = 6,624 and 87 × 78 = 6,786, they always change their minds. An anecdote from Amos Tversky (2003) makes a similar point. In a laboratory experiment, many of his subjects made intransitive choices. When this was pointed out, a common response was to claim that his records were mistaken — the implication being that they wouldn’t have made intransitive choices if they had realized they were doing so. (…) In brief, rational decision theory is only a useful positive tool when the conditions are favorable. Economists sometimes manage to convince themselves that the theory always applies to everything, but such enthusiasm succeeds only in providing ammunition for skeptics looking for an excuse to junk the theory altogether.”

Racionalidade em Economia se identifica com a transitividade das preferências. Matematicamente a definição é: “Dadas três alternativas A, B e C, se A é preferido a B e se B é preferido a C, então A é preferido a C”. Em símbolos, se A>B e B>C, então A>C, em que “>” é a ordenação de preferências. A expressão A>B se lê “a alternativa A é preferida à alternativa B”. A transitividade permite que você junte as três comparações numa única cadeia de símbolos: A>B>C.

A definição matemática decorre de uma lógica econômica prévia, que os livros não explicam, os professores não falam e os alunos não sabem.

Pra entender o significado econômico, considere três alternativas — A, B e C — e suponha que a preferência é intransitiva ou cíclica: A>B>C>A. O que acontece aqui? Basicamente o seguinte: o indivíduo, ao escolher uma alternativa, não consegue identificar qual é a melhor alternativa sacrificada. O problema não é só a inexistência de uma alternativa ótima, mas principalmente a impossibilidade de identificar o sacrifício incorrido, ou seja, o custo de oportunidade. Tente você mesmo escolher uma das alternativas e responder às seguintes perguntas:

(1) Sua escolha é ótima?

(2) Qual a melhor alternativa sacrificada?

Você não conseguirá responder.

Eis a chave! A transitividade permite ordenar as alternativas numa cadeia, da melhor para a pior: A>B>C. Nela fica claro que a alternativa ótima é A e que a melhor alternativa sacrificada é B. Portanto, o significado econômico do axioma da transitividade é o seguinte:

DEFINIÇÃO ECONÔMICA DA TRANSITIVIDADE DAS PREFERÊNCIAS: no padrão de seu comportamento ao longo do tempo, sempre que o indivíduo toma uma decisão que considera ótima, geralmente ele é capaz de identificar a melhor alternativa sacrificada.

É isso que está por trás desse axioma. A forma matemática do axioma é só um modo útil de descrever a economia subjacente. O indivíduo é irracional quando, no padrão de seu comportamento, geralmente ele é incapaz de identificar a melhor alternativa sacrificada ao tomar uma decisão. É como se o indivíduo continuasse a pôr a mão no fogo, apesar de se queimar todas as vezes que o faz, sem apresentar qualquer sinal de que compreendeu o erro e revisará seu comportamento.

Observe que a ordenação em cadeia só foi possível porque tínhamos 3 alternativas. Em geral, a ordenação em cadeia é possível para qualquer número finito de alternativas. Você consegue listar as opções mentalmente. Muitas vezes, porém, temos infinitas alternativas (mesmo um continuum). Neste caso, não é possível ordenar as opções. O que fazemos então? Vamos à essência do raciocínio e capturamos o seguinte aspecto fundamental:

1. Pelo menos o indivíduo deve ser capaz de tomar uma decisão diante de duas alternativas.

2. Fazendo isso sempre que defrontado (um número finito de vezes) com um par de alternativas, a transitividade dará uma ordenação em cadeia graças à qual o indivíduo identificará não só a alternativa ótima, como também a melhor alternativa sacrificada, no conjunto finito das alternativas consideradas.

Esse aspecto fundamental é o que denominamos por axioma da completeza das preferências. Por isso é que, nos livros-textos, costumamos tomar preferências transitivas e completas como definição de racionalidade. Eu, particularmente, considero que basta a transitividade. A completeza (que deve ser assumida quando pressupomos um continuum de alternativas) tem um papel fundamental na representação numérica das preferências por uma função de utilidade.

Note que esse raciocínio tem por fim uma certa adequação à finitude humana. O “número finito de vezes” acima poderia ser substituído por “um número enumerável de vezes”, mas isso exigiria fortes condições adicionais (como a compacidade do conjunto de alternativas, continuidade das preferências etc.) e cancelaria o caráter universal do raciocínio sob finitude.

Ken Binmore ilustra de forma simples o argumento evolucionário de Alchian. Suponha que Adão é irracional. Particularmente, suponha que ele possui preferências intransitivas (cíclicas) sobre 3 alternativas: A>B, B>C e C>A. Se juntarmos tudo numa expressão única, teremos A>B>C>A. Adão tem $3 de recursos e possui 1 unidade de A e 1 de B, mas nenhuma de C. Em símbolos, a(A,B,C,$)=a(1,1,0,$3). Eva possui 1 unidade de C e nenhuma de A e B, além de não possuir recursos. Em símbolos, e(A,B,C,$)=e(0,0,1,$0).

Admita que as preferências estritas de Adão são robustas no seguinte sentido: sabendo que A>B, então Adão prefere A a B, ou seja, ele está disposto a sacrificar B em troca de A; além disso, ele está disposto a sacrificar não só B, mas B e $1 de seus recursos em troca de A. Para deixar claro, “A>(B+$1)”. Assim, podemos descrever as preferências de Adão como:

A>(B+$1), B>(C+$1) e C>(A+$1)

O que Eva faz? Sabendo que Adão não possui C e que C>(A+$1), ela oferece a Adão 1 unidade de C em troca de 1 unidade de A e $1 dos recursos de Adão. A alocação fica, então:

a(A,B,C,$)=a(0,1,1,$2)

e(A,B,C,$)=e(1,0,0,$1)

Numa segunda etapa, sabendo que, para Adão, A>(B+$1), Eva oferece a Adão 1 unidade de A em troca de 1 unidade de B e $1. Adão aceita e a alocação se torna:

a(A,B,C,$)=a(1,0,1,$1)

e(A,B,C,$)=e(0,1,0,$2)

Por fim, dado que, para Adão, B>(C+$1), Eva oferece a Adão 1 unidade de B em troca de 1 unidade de C e $1. Adão aceita e a alocação se torna:

a(A,B,C,$)=a(1,1,0,$0)

e(A,B,C,$)=e(0,0,1,$2)

Adão voltou à alocação inicial que tinha, mas perdeu todos os recursos. Esse exemplo ilustra o fato de que a irracionalidade de Adão irá eliminá-lo, a não ser que ele aprenda com os erros e revise suas preferências. Essa é exatamente a natureza da resposta de Savage a Allais: “Agora eu sei que errei…”

A Teoria Econômica não supõe que as firmas maximizam lucro, mas as que consistentemente não maximizam tampouco sobrevivem. Em seu artigo, Alchian descreve mecanismos pelos quais as firmas imitam firmas exitosas. O leitor mais técnico perceberá também que Alchian não supõe que as preferências sejam completas. Ele sequer usa esse termo, mas a ideia está lá. Eis porque, com Alchian, sinceramente não introduzo o condição de completeza como condição definidora de racionalidade.

Na argumentação acima usei expressões como “sabendo que, para Adão, A>(B+$1), Eva…” Não, Eva não precisa “saber”, ela não tem que ter esse conhecimento perfeito. Basta que ela ofereça a troca. Se Adão aceitar, ele terá revelado que A>(B+$1). É assim que funciona: preferência revelada.

Em suma, espero ter esclarecido duas coisas importantes: a relevância de Alchian para a Teoria Econômica e o entendimento correto de racionalidade em Economia. Se alguém lhe disser que racionalidade em Economia significa que o agente é um computador ambulante com conhecimento perfeito, retire-se da discussão: não há custo de oportunidade sequer minimamente negligível que valha seu tempo com quem vive de atacar os próprios espantalhos que cria.

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Rodrigo Peñaloza
Rodrigo Peñaloza

Written by Rodrigo Peñaloza

PhD in Economics from UCLA, MSc in Mathematics from IMPA, Professor of Economics at the University of Brasilia.

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