Aspectos normativos ocultos em conceitos aparentemente objetivos da Teoria Econômica
(Rodrigo Peñaloza, 18-IX-2019)
Produção, num sentido geral, é a geração de excedente do ponto de vista de quem produz. A troca de bens é produtiva quando gera excedentes. Se eu pago uma pessoa para exercer uma atividade que me gere excedente, então essa atividade é produtiva do meu ponto de vista. Se ela aceita, então a atividade é produtiva do ponto de vista dela também. A produção no sentido técnico é um caso particular dessa concepção mais geral. Ela se expressa pela transformação de atributos dos recursos. Esses atributos incluem tanto aspectos físicos como também disponibilidade, lugar e forma. Assim, se sacrifico recursos para transformar um bem e dele obter excedentes líquidos, isso é produção. O conceito de produção, embora completamente “positivo” na aparência, esconde um aspecto normativo que a muitos passa despercebido. William Allen e Armen Alchian ilustram esse aspecto no exercício n.1 do capítulo 12 de seu livro University Economics, p. 214 da 3a edição:
(1) A rouba de B.
a. Isso é produção? Por quê?
b. Se você diz “Não, porque B é prejudicado”, então o que você diria sobre o caso em que uma nova invenção desloca outros produtores para fora do mercado?
c. Existem tipos de produção que, na sua opinião, não deveriam ser permitidos?
A resposta que eles dão ao exercício (no fim do livro) é esclarecedora: Usualmente, o termo produção é usado como referência somente a atividades tidas como não-ilegais. Gostaríamos de ter uma resposta melhor. A pergunta ajuda a revelar o conteúdo normativo oculto de conceitos que à primeira vista parecem ser objetivos e livres de pressuposições éticas. As respostas para os itens b. e c. ficaram para o estudantes, como forma de reflexão, embora claramente a resposta ao item a. já nos dê uma clara ideia do rumo a tomar.
Por que fiz este post? — você pode perguntar. David Friedman conta uma anedota que ajuda a separar o joio do trigo. Aqui a reproduzo:
Você e sua família juntaram dinheiro por dois anos, compraram um pacote turístico e foram passar o final de ano em Paris. Passeando pelas ruas, veem passar uma Lamborghini Veneno, de 4,2 milhões de euros. Seu cunhado diz: “Eu queria muito ter esse carro!” Você, como economista, responde: “Certamente que não.” Por quê?
Muita gente erra, dizendo que o cunhado da história não agiria jamais para adquirir a Lamborghini porque sua restrição orçamentária não lho permite. Vejam o erro de quem assim responde. Ora, a pessoa pode vender todos os seus bens e comprar bilhetes de loteria para aumentar suas chances de ganhar e assim comprar o carro. Ela o fará se o valor que atribui ao carro, já considerados o risco e a aversão ao risco, for maior que o custo associado ao sacrifício dos próprios bens. Se ele não faz isso, é porque ele valora mais seu status quo que o carro. Logo, se ele não age de alguma forma para adquirir a Lamborghini, então é porque ele de fato, não “quer muito esse carro”. Ele “quer mais” o seu status quo. Quando eu escrevi “ele não age de alguma forma”, foi de propósito. A forma que eu descrevi (trocar tudo por uma loteria) é uma forma não-ilegal. Nenhum direito de propriedade é violado nesse processo.
Entretanto, a ação para aquisição da Lamborghini pode dar-se por vias ilegais. O cunhado pode associar-se a criminosos para assaltar os cofres de um banco e, com o dinheiro roubado, adquirir o carro. Existem várias formas de disfarçar a origem do dinheiro, como sabemos. Ele agirá dessa forma se o valor que atribui ao carro for maior que o valor que atribui à submissão a normas morais de comportamento e ao risco de ser pego.
Portanto, nada na Teoria Econômica restringe o ato da escolha ao ambiente legal. A escolha do consumidor só está restrita ao conjunto orçamentário no âmbito do modelo, não do da teoria. Similarmente, a produção está restrita à tecnologia apenas no âmbito do modelo, não no da teoria. A tecnologia é um caso particular de produção, aquele caso caracterizado pela transformação de bens. De um modo geral, o termo que Gary Becker adota é muito mais apropriado, por ser geral o bastante para englobar todas as possibilidades. Em vez de falar de conjunto orçamentário, tecnologia etc., ele usa o termo opportunity set (conjunto de oportunidades). Atividades ilegais fazem parte do conjunto de oportunidades tanto quanto atividades não-ilegais. O erro das várias respostas a essa anedota repousa no fato de que essas pessoas não compreendem que a formalização do modelo econômico se resume a uma instância particular do escopo abrangido pela Teoria Econômica. Elas restringem a Teoria Econômica ao que aprenderam nos livros-textos e até ao que vislumbram nos mais técnicos artigos acadêmicos. Estão acostumadas a pensar em produção apenas como expressão do caso particular de transformação de bens, não como qualquer atividade que gere excedente. É o hábito. Porém, é preciso entender que a teoria vai mais longe. O que é pensar como um economista? Por que compreendemos tão mal os conceitos mais elementares? Por que Chicago tem tantos prêmios Nobel? Fica a dica.
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