Rodrigo Peñaloza
29 min readDec 26, 2015

COMPETIÇÃO PERFEITA: O QUE É ISSO?
(Rodrigo Peñaloza, nov. 2015)

Neste texto procuro expor as profundas mudanças que a Teoria Econômica já empreendeu em relação à ideia de competição perfeita e à formulação walrasiana tradicional do equilíbrio geral. Não é um artigo científico, nem um working paper. Foi escrito especificamente para divulgação científica. Quem tiver a paciência de ler, descobrirá que sempre esteve equivocado sobre o que pensava ser a competição perfeita e sobre as críticas ao modelo de equilíbrio walrasiano. Pelo menos assim espero. Mostrarei que, no decorrer das duas últimas décadas do milênio passado, o modelo de equilíbrio geral foi reformulado de modo a responder às críticas que sofreu e isso acarretou uma compreensão muito mais profunda do papel da competição perfeita.

1. A visão comum de competição e sua origem

É comum encontrarmos o conceito de competição perfeita expresso em termos das seguintes condições: existência de um grande número de compradores e vendedores em mercados de bens homogêneos, impossibilidade de influência de cada agente sobre preços e mercados e, por fim, conhecimento perfeito de todos os preços e bens.

Quando Mas-Colell (1980) caracteriza a competição perfeita como a estrutura de mercado em que “…prices are publicly quoted and are viewed by the economic agents as exogenously given”, ele está simplesmente dizendo que os agentes não têm como influenciar os preços, ou seja, que eles são price-takers. Entretanto, mesmo quando oferece uma abordagem em termos de comportamento estratégico e teoria dos jogos, ele é enfático em dizer que o tamanho insignificante do agente relativamente ao mercado é a chave para que o comportamento estratégico se aproxime da competição perfeita e do equilíbrio walrasiano.

Eis aí um ponto importante. O construto teórico do equilíbrio walrasiano é tão intimamente ligado à ideia de competição perfeita que as pessoas tendem a considerar os dois como equivalentes. O problema é que não são! Outra confusão, desta vez não no meio acadêmico, mas entre alunos com pouca base teórica, é a que se faz entre o modelo marshalliano de equilíbrio de longo-prazo em uma indústria e a competição perfeita em uma economia. Esta última confusão é tão absurda que sequer merece esclarecimentos.

A razão do tremendo impacto que Walras teve na Economia está no fato de ele ter ido muito além das formulações de Jevons e Menger, tendo não só introduzido a ideia de utilidade marginal no seu modelo (Menger e Jevons, na verdade, tiveram essa ideia antes, mas não a formalizaram em um modelo), mas também tendo integrado os agentes em uma economia de muitos mercados mediante um engenhoso sistema de equações.

O método de análise marginalista é nada mais nada menos que um método otimizatório. Se você não conhecesse coisa alguma de Economia e tivesse que resolver uma otimização condicionada de um problema econômico, você poderia chegar às condições de primeira ordem mediante um argumento marginalista e interpretá-las com tanta desenvoltura econômica quanto um estudante de Economia. Para formular o seu modelo, Walras usou uma hipótese que auxiliava enormemente sua análise marginalista: a de que os agentes são price-takers. Essa hipótese foi fundamental para que ele chegasse ao princípio equimarginal que caracteriza a escolha ótima (lembre-se da igualdade das taxas marginais de substituição entre quaisquer dois bens: todas são iguais entre si em equilíbrio e iguais ao preço relativo dos bens). Jevons chegou ao mesmo princípio sob o nome de lei do preço único, que, expressa em termos modernos, diz apenas que em equilíbrio as oportunidades de arbitragem são esgotadas. Explorar oportunidades de arbitragem significa fazer lucro a partir das diferenças entre taxas marginais de substituição. Se houvesse dois preços, haveria duas taxas marginais de troca que poderiam ser exploradas.

2. Um desvio: tâtonment não, mas arbitragem

De acordo com Walras, o processo de ajuste de mercado ou o caminho para o equilíbrio se dá pelo ajuste de preços conforme haja excesso de demanda ou de oferta agregada. A esse processo Walras deu o nome de tâtonment. Uzawa, Debreu e outros formalizaram essa ideia mediante um sistema dinâmico em que o vetor de preços converge para preços walrasianos por um processo de ajustes simultâneos ou sucessivos. O próprio Walras não foi muito claro quanto ao que isso significaria. A despeito de sua aparente elegância, o tâtonment não convence. A arbitrariedade da lei dinâmica que rege o processo é justificada pela assunção de um ente onisciente ao qual a Teoria costumou chamar de leiloeiro walrasiano. Na moderna Teoria de Equilíbrio Geral, o caminho para o equilíbrio se dá de outra forma: arbitragem.

Arbitragem, grosso modo, é comprar barato pra vender caro. Mas é importante entender o que significa. Em equilíbrio vale o que Jevons denominou de princípio equimarginal: as taxas marginais de substituição (TMS) entre dois bens em equilíbrio igualam os preços relativos de equilíbrio e, como os preços são os mesmos para todos os agentes, então as TMS’s são igualadas entre os agentes. O problema é: o que ocorre quando elas não são iguais? Impor uma lei dinâmica de nível agregado (tâtonment) não explica como os agentes agem de fato no nível privado. É aqui que entra a arbitragem. Vou dar um exemplo.

Há três bens (x, y e z) e três consumidores (1, 2 e 3) com as seguintes utilidades e dotações iniciais:

consumidor 1: utilidade U¹(x,y,z)=x e dotação e¹=(0,1,0)
consumidor 2: utilidade U²(x,y,z)=y e dotação e²=(0,0,1)
consumidor 3: utilidade U³(x,y,z)=z e dotação e³=(1,0,0)

Explicando: o consumidor 1 só gosta de x, mas só tem 1 unidade de y; o consumidor 2 só gosta de y, mas só tem 1 unidade de z; o consumidor 3 só gosta de z, mas só tem 1 unidade de x. Por alguma razão, o consumidor 2, por exemplo, percebe a diferença entre as TMS’s dos consumidores 1 e 3: o consumidor 1 está disposto a abrir mão de 1 unidade de y por 1 de x; o consumidor 3 está disposto a abrir mão de 1 unidade de x por 1 de z. O problema é que eles (1 e 3) não têm interesse em negociar bilateralmente, pois 1 não tem o z que 3 quer.

É aí que o consumidor 2 oferece a 1 um contrato: 2 dará a 1 uma unidade de x em troca da unidade de y. O consumidor 1 tem interesse nisso, pois, sem troca, sua utilidade é 0 e, com o contrato, será 1. Feito o acordo, ele vai até o consumidor 3 e oferece outro contrato: 2 dará a 3 uma unidade de z em troca da unidade de x. O consumidor 3 aceita pelas mesmas razões de 1 e faz a troca. O consumidor 2 dá seu z a 3 e recebe em troca x. Então ele vai até o consumidor 1 e lhe dá esse x em troca de y. O resultado final é a alocação:

consumidor 1: f¹=(1,0,0)
consumidor 2: f²=(0,1,0)
consumidor 3: f³=(0,0,1)

Como z foi trocado por x à taxa de 1:1, os preços relativos dos bens x e z são iguais a 1; como y foi trocado por x à taxa de 1:1, os preços relativos dos bens y e x são também iguais a 1. Logo, TMS¹=TMS²=TMS³=1, ou seja, vale o princípio equimarginal. Note que os preços relativos surgem como reflexo das taxas marginais de troca durante o processo, eles não têm que ser dados exogenamente. Enquanto houver oportunidades de arbitragem, ou seja, enquanto algum agente perceber, estando alerta, que existe gente querendo comprar e gente querendo vender a taxas diferentes, e enquanto esse agente julgar vantajoso intermediar as trocas, haverá exploração de arbitragem. Simultaneamente a isso, entra no jogo o princípio da valoração marginal decrescente, que vai modificando as taxas marginais de troca até o ponto em que as oportunidades de arbitragem se esgotam. Evidentemente isso é um processo sem fim, pois as preferências não permanecem constantes e nem é verdade que as oportunidades são visíveis para todos. O papel dos preços de mercado é sinalizar onde há oportunidades de arbitragem.

Ao mesmo resultado se chega pela modelagem walrasiana: se p, q e s são os preços de x, y e z, respectivamente, e dadas as utilidades e as dotações iniciais, as demandas marshallianas dos agentes são:

agente 1: f¹(p,q,s)=(q/p,0,0)
agente 2: f²(p,q,s)=(0,s/q,0)
agente 3: f³(p,q,s)=(0,0,p/s)

Por exemplo, o agente 1, que tem utilidade U¹(x,y,z)=x e dotação e¹=(0,1,0), maximiza sua utilidade U¹(x,y,z)=x sujeito a sua restrição orçamentária px+qy+sz=q, isto é, ele resolve:

max x
s.a px+qy+sz=q

Claramente y=z=0 e o consumidor gasta toda sua renda em x. Similarmente para os outros. Como há 3 bens, precisamos de market clearing em dois mercados, por exemplo, x e y. Em x, demanda agregada iguala oferta agregada:

q/p+0+0 = 0+0+1

ou seja, q/p=1 ou p=q. Fazendo o mesmo no mercado de y, encontramos s/q=1 ou s=q. Isso implica que s=p ou p/s=1. Todos os preços relativos são iguais a 1. Logo as cestas de equilíbrio walrasiano são:

f¹=(1,0,0)
f²=(0,1,0)
f³=(0,0,1)

e os preços de equilíbrio são p=q=s.

O que faltava era a Teoria explicar o que engatilha a arbitragem. De acordo com a Escola Austríaca, a explicação é o alertness, um estado de alerta diante dessas oportunidades de ganho. Israel Kirzner aplicou essa ideia muito bem à noção de “empresário”. Na Teoria Econômica mainstream essa ideia também foi parcialmente incorporada. O que quero dizer com isso é que a arbitragem superou o tâtonment como característica do processo, embora não exatamente como Kirzner defendia, pois não há como modelar matematicamente, na minha opinião, a ideia de alertness. Note que cada agente não tem que conhecer todas as TMS’s, apenas aquelas que lhe interessam, tal como o conhecimento fragmentado dos preços de mercado de que fala Hayek.

O fato é que a moderna modelagem do caminho para o equilíbrio não é mais tâtonment, embora até hoje seja capítulo de livros-textos. O modo aceito hoje é o da exploração das oportunidades de arbitragem, que nada mais são do que ganhar com as diferenças entre as TMS’s dos agentes. O exemplo que eu dei é extremamente trivial, pois minha intenção foi apenas lançar uma luz, mas o leitor pode consultar a seguinte referência sobre o tema: Makowski, L. & J. Ostroy (1998), “Arbitrage and the flattening effect of large numbers”, Journal of Economic Theory 78, 1–31. O seguinte excerto desse paper resume magnificamente a ideia: “Using a model with a continuum of agents, we show that competitive equilibrium can be regarded as resulting from the elimination of arbitrage opportunities, rather than from the elimination of Walrasian excess demands”.

3. Voltando ao problema da competição

Deixando o tema da arbitragem de lado e voltando à ideia de price-taking da modelagem walrasiana, vê-se que o modus videndi walrasiano varou as décadas e se estabeleceu definitivamente na formulação de Hicks da microeconomia e no modelo Arrow e Debreu de equilíbrio geral nos anos 50. O fato de Arrow ter chamado o equilíbrio walrasiano de equilíbrio competitivo apenas contribuiu para a associação entre equilíbrio walrasiano e competição perfeita. Gol contra de Arrow. Esse modus videndi aparece hoje, por exemplo, nos modelos básicos da teoria do consumidor, da produção e nos modelos de equilíbrio geral: todos os preços estão dados. Os mercados também. Até nos modelos macrodinâmicos de equilíbrio recursivo é assim.

O equilíbrio walrasiano possui ainda outros problemas. Quando se chega a ele, morre-se. Ele é o buraco negro do comportamento humano. Se nada externo acontecer que mude os parâmetros, o consumidor permanecerá com sua cesta ótima, a firma com seu plano de produção ótimo e os acionistas com suas carteiras. O empresário é um autômato. Seu comportamento no processo produtivo se resume a apertar o botão da tecnologia e da minimização de custos e esperar. A insatisfação aumenta quando a esse estado letárgico de coisas dá-se o nome de equilíbrio competitivo. O que entendemos, porém, por comportamento competitivo é outra coisa. É o empresário manipulador de preços e mercados, é a barganha do consumidor, é o comportamento estratégico e de rent-seeking dos agentes, é a inovação, é a abertura de novos mercados e o fechamento de outros. Em nada essa concepção do senso-comum combina com o construto do equilíbrio competitivo. De fato, por que um produtor em equilíbrio walrasiano não poderia decidir fechar sua empresa e abrir um mercado novo pro qual ele vislumbrasse oportunidades de ganho? Um consumidor poderia achar melhor mudar seu conjunto de consumo. Essas e outras mudanças desse tipo são mudanças nos parâmetros do modelo que levam os agentes a outra economia e, portanto, a outro equilíbrio walrasiano. Se o excedente total dessa economia for maior, haverá incentivos para que os agentes assim façam. Em suma, não há porque morrer no equilíbrio walrasiano. A pergunta é, então: como se dá isso?

Devo esclarecer dois pontos neste momento. Primeiro, o equilíbrio walrasiano deve ser denominado apenas como equilíbrio walrasiano ou equilíbrio geral, não como equilíbrio competitivo, pois em equilíbrio não há mais competição, tudo cessa. Não escapa disso nem mesmo uma economia dinâmica em que as escolhas ótimas são uma sequência de ações aleatórias, pois a letargia repousará sobre a distribuição de probabilidade subjacente. Marshall já dizia isso. Naquela época, os economistas usavam a expressão “economia no seu estado normal” pra designar não só a média mas também a distribuição das variações aleatórias. Portanto, nada de novo no front. O segundo ponto é que a competição perfeita não é um estado de coisas, é um processo. Essa ideia é austríaca e é muito bem ilustrada por Hayek e Israel Kirzner. Ao contrário do que muita gente pensa, a Microeconomia já incorporou essa ideia em Equilíbrio Geral há muito tempo. Há, portanto, muito mais conversa entre as duas escolas do que pensa a grande massa. A diferença é que os austríacos (nem todos) negam a validade epistêmica de formalização matemática desse processo e o mainstream prefere pagar um preço epistêmico pra poder formalizar a ideia em um modelo. Outra diferença fundamental e, segundo penso, intransponível, são os pressupostos epistemológicos do comportamento econômico. Para o mainstream, os elementos relevantes para a decisão têm de ser listados pelo agente, ele tem de conhecê-los e saber que os conhece. Para os austríacos, o comportamento humano possui um aspecto de incerteza genuína, não probabilizável e, portanto imensurável. Eu, particularmente, concordo com o conceito de alertness estudado por Kirzner, um insight profundo de uma mente brilhante, mas compreendo que é impossível modelar esse conceito matematicamente e inseri-lo na abordagem mainstream sem perder grande parte de sua pureza. O que me parece ser a divergência mais séria aparece no equilíbrio geral com produção. Os austríacos corretamente afirmam que os custos econômicos são prospectivos e subjetivos. Portanto, as decisões de produção não se coadunam com qualquer ideia de demanda agregada ou oferta agregada. Esse nível de agregação não subsiste à ideia de que os preços que os empresários usam para a tomada de decisão não possam ser comparáveis. A única maneira de conciliar as duas escolas nesse ponto é pela hipótese de que, ao conceberem os preços subjetivos futuros, os empresários usam os preços presentes como estimadores e, acima de tudo, concordam quando às estimativas, algo que certamente não seria aceito pelos austríacos. Mesmo para o mainstream, essa hipótese seria forte demais. Creio haver barreiras pesadas entre as duas abordagens, mas assim mesmo há muitos pontos que podem ser aproximados e, para tanto, é preciso um mergulho comum de ambas escolas nas mesmas águas turvas. É preciso, também, entender os pontos inconciliáveis e as razões que os justificam.

Voltando ao tema dos problemas da formulação walrasiana, não é de se surpreender que o interesse de pesquisadores e alunos tenha se voltado para o equilíbrio parcial com violações daquelas condições listadas acima. Os desenvolvimentos da Teoria dos Incentivos e do desenho de mecanismos a partir de Hurwicz, da Teoria dos Jogos não-cooperativos a partir de Nash e von Neumann e dos jogos cooperativos a partir de Shapley e Oskar Morgenstern são a prova cabal do que digo.

As críticas que levaram a essa fuga em massa foram muitas, mas sobre pontos específicos e vindas de economistas de primeira linha. Elas podem ser sintetizadas nos seguintes pontos:

QUADRO 1. Críticas fundamentais ao equilíbrio geral e à competição perfeita.
(A) SCHUMPETER: o modelo walrasiano não comporta a inovação.
(B) ISRAEL KIRZNER: o empresário do mundo real é ativo, criativo e alerta e em nada se parece com o empresário autômato do mundo walrasiano.
(C) HAYEK: o conhecimento de preços é fragmentado e disperso na economia.
(D) JOAN ROBINSON: na competição não há preços dados, o que há são ofertas e demandas perfeitamente elásticas.
(E) COASE: existem externalidades e isso significa divergências entre benefícios e custos marginais privados e sociais, algo que o modelo walrasiano não aborda.
(F) HURWICZ: os agentes são oportunistas e têm comportamento estratégico em função de informação privada.

Todas essas críticas levaram os economistas a preterir o modelo de equilíbrio geral em favor de análises de equilíbrio parcial e a encarar o modelo de equilíbrio geral como não mais que uma idealização de um mundo perfeito e irreal.

4. O marginalismo tem dois pilares, mas você só conhece um

Para entender como foi que o equilíbrio geral e a ideia de competição perfeita levaram tanta pancada, é importante voltar no tempo, ao surgimento do marginalismo em fins do século 19. Quem lê os autores da época (John Bates Clark, Phillip Whicksteed, William Jevons e outros) perceberá nas entrelinhas que o marginalismo dizia respeito a dois tipos de margem: a margem da mercadoria e a margem do indivíduo. Quando Marshall escreveu, no início do século 20, os seus Principles of Economics, ele tinha um público alvo muito particular: o mundo empresarial. De certa forma, os Principles eram um livro de divulgação científica. Em consideração ao público - e cavalheiro que era -, Marshall foi enxuto na exposição das ideias: ele se restringiu ao marginalismo nas mercadorias. Mas o sucesso foi tanto que o seu livro se tornou basicamente o livro-texto de Microeconomia até o aparecimento de Value and Capital, de Hicks. Joan Robinson e Keynes estudaram nele. Seguindo a linha do marginalismo na mercadoria, o livro de Hicks se tornou também uma espécie de livro-texto de Microeconomia, mas com coisas novas sobre a Teoria do Consumidor, como os conceitos de excedente, variações equivalente e compensatória etc. A partir dele, os livros-textos tiveram menos impacto teórico e eram, de fato, apenas livros-textos. Como exemplos, temos Fergunson, Henderson-Quandt, Varian, Kreps, Mas-Colell e, mais recentemente, Rény. Esses livros foram as fontes onde beberam os pesquisadores e sobre cuja base foram erigidas as teorias modernas.

Observe que o marginalismo no indivíduo passa ausente em todas essas obras. A Teoria de Equilíbrio foi erigida sobre um único pilar: o marginalismo na mercadoria. O pilar do indivíduo permaneceu inconstructo. Você pode se estar se perguntando: O marginalismo no indivíduo? Imagine que a economia está em seu ótimo e seja G o ganho total de trocas. O que aconteceria se um agente i se retirasse dessa economia com todos os seus recursos e habilidades privados? A economia alcançaria um novo ótimo e teria um novo ganho total de trocas, G(-i). O adscrito entre parênteses denota “sem a presença do agente i”. O indivíduo i tem, portanto, um impacto marginal sobre os ganhos totais de troca, CMS=G-G(-i). Esse impacto é a contribuição marginal social (CMS) para os ganhos sociais de troca. Essa diferença de ganhos ou de excedente líquido se manifesta em divergências entre benefícios e custos marginais sociais e privados. (“By the way”, para os austríacos não é possível mensurar esses excedentes sociais, por serem formados de termos incomensuráveis). Um dos aspectos mais importantes da Economia, para a ideia de competição e de eficiência, senão o mais importante, é que a contribuição marginal social deve ser contraposta ao excedente privado do agente. Infelizmente esse é um tipo de raciocínio que o estudante não vai aprender em livros-textos. Permitam-me chamar esse tipo de raciocínio de análise marginal no indivíduo (AMI).

Apesar de ter sido um pilar inconstructo, de tempos em tempos alguns autores tocavam nesse ponto. Pigou, em sua obra-prima The Economics of Welfare, analisa as estruturas de mercado em termos de AMI, só que os indivíduos, pra ele, são as firmas. As ideias de Coase sobre externalidades e direitos de propriedade são AMI. Isso é mais evidente ainda em seus artigos menos conhecidos. Marcantes são os seus papers em que ele trata das ferrovias e dos faróis. Hurwicz, quando lançou as bases da moderna teoria de mechanism design nos anos 60, tentava reproduzir, via mecanismos de incentivos, o alinhamento entre CMS e excedente privado, ou seja, AMI. Como caso particular desse esforço, temos ainda o leilão de segundo maior preço, estudado por Vickrey nos anos 60 e que lhe conferiu o prêmio Nobel.

Vou dar um exemplo bem simples sobre o leilão de Vickrey. Um leiloeiro quer leiloar um objeto e seu preço de reserva é $10. Existem 4 participantes (a, b, c, d) cujas valorações são:

Va=$25
Vb=$20
Vc=$18
Vd=$16

O participante a vence o leilão e arremata o objeto. Pelo desenho do leilão de Vickrey, ele deve pagar o segundo maior lance, que foi de $20. Como ele valoriza o objeto em $25, então recebe um excedente privado de $5. O leiloeiro tem um preço de reserva de $10 (que é o preço que o deixa indiferente entre leiloar ou não o objeto), recebe $20 e tem, portanto, um excedente privado de $10. Todos os demais participantes ficam zerados. O excedente total da economia é, por conseguinte, G=$15, que é a soma $5+$10 dos excedentes de a e do leiloeiro. Se o agente a não tivesse participado do leilão, então, aplicando as mesmas regras, quem teria vencido seria b e o excedente total teria sido G=$10, pois b teria excedente de $2 e o leiloeiro de $8. Dessa forma, a CMS do agente a é CMSa=G-G(-a)=$5. Note que a CMS de a coincide com o seu excedente privado ao participar: há um alinhamento entre o excedente privado do agente e sua contribuição social para a economia. Esse alinhamento, pelas regras do leilão, acontece pra todos os participantes, inclusive para o leiloeiro. É por isso que o leilão de Vickrey é eficiente. O resultado permanece o mesmo se introduzirmos informações privadas.

5. O que é uma economia perfeitamente competitiva

O leilão de Vickrey possui, assim, a seguinte propriedade: cada indivíduo internaliza, na forma de excedente privado, toda a sua contribuição marginal social. Essa é a propriedade essencial da competição perfeita! Uma economia perfeitamente competitiva é como um leilão de Vickrey gigante, em que cada agente se apropria integralmente, na forma de excedente privado, de sua contribuição marginal para os ganhos sociais de troca. O segundo maior preço, do ponto de vista de cada agente, são as opções externas perfeitamente substituíveis, sendo este o lugar em que os grandes números, outra característica tradicional da competição, entra em ação.

É ilustrativo o seguinte trecho do artigo de Makowski & Ostroy (2001): We will define a perfectly competitive equilibrium as one in which every individual fully appropriates his social contribution, when viewed as the marginal individual added to the economy. The experiment is analogous to standard marginal productivity theory where, to calculate any worker’s marginal product, we view him as the marginal worker added to the firm. A fundamental lesson comes from the question “which worker is the marginal one?” The teacher smiles and says, “They all are!” [Makowski & Ostroy (2001): “Perfect competition and the creativity of the market”, Journal of Economic Literature, 39, pp. 479–535].

Esse artigo é uma exposição elementar, porém longa, de toda a reformulação do equilíbrio geral e da competição perfeita elaborada por Ostroy ao longo de duas décadas. Os artigos do Journal of Economic Literature possuem essa característica: eles expõem de forma didática e simples as grandes contribuições teóricas que já se estabeleceram na fronteira. A ideia é simplificar a exposição das novas teorias de modo que alcancem um público maior. Não à toa o artigo tem quase 60 páginas, mas é um dos artigos mais interessantes e bonitos que já tive a oportunidade de estudar.

A AMI é a chave para a reformulação da competição perfeita e da teoria do equilíbrio geral. É o pilar do marginalismo que faltava ser erigido. Ostroy usa uma metáfora esclarecedora sobre isso. A competição perfeita é como uma moeda. A abordagem walrasiana tradicional é apenas um dos lados dessa moeda e, de fato, o modelo walrasiano é incapaz de responder às críticas sintetizadas no QUADRO 1, de modo que, desse ponto de vista, as críticas são legítimas e válidas. Entretanto, existe o outro lado, a AMI, que, como o leitor deve ter notado, é de natureza essencialmente pigoviana. O outro lado da moeda resolve a maior parte dessas críticas e, quanto às que não resolve, explica o porquê.

O levantamento do segundo pilar do marginalismo, a AMI, começou com o paper seminal de Ostroy em 1980: “The no-surplus condition as a characterization of perfectly competitive equilibrium,” Journal of Economic Theory, 22(2), pp. 183–207. Simultaneamente, seu aluno Louis Makowski publicava dois outros artigos na mesma edição do próprio Journal of Economic Theory (JET) daquele mesmo ano: “A characterization of perfectly competitive economies with production” e “Perfect competition, the profit criterion, and the organization of economic activity”. Três artigos dedicados aos mesmos autores no mesmo número do JET! Em 1984 outro artigo importante foi publicado por Joseph Ostroy, desta vez na Econometrica: “A reformulation of the marginal productivity theory of distribution”.

Nos anos 80, esses artigos se constituíram no início do levantamento do pilar da AMI em equilíbrio geral e da reformulação da ideia de competição perfeita, pois faltava ainda estender essas ideias para temas importantes do ponto de vista da moderna pesquisa econômica, como as questões do equilíbrio geral com bens públicos, o problema da informação assimétrica (adverse selection e moral hazard) e a teoria de mechanism design. Isso se deu basicamente na segunda metade dos anos 90. O leitor pode consultar a lista de artigos no fim deste texto. O capítulo 16 de Mas-Colell, no apêndice, traz uma exposição do artigo seminal de 1980 de Ostroy. Como é um livro do início dos anos 90, o assunto era ainda uma área de pesquisa na fronteira.

A competição perfeita tem três ingredientes fundamentais: substitutos perfeitos (no nível dos agentes, ou seja, os vendedores possuem compradores alternativos e os compradores possuem vendedores alternativos), ofertas e demandas perfeitamente elásticas e apropriação plena, ou seja, alinhamento entre os excedentes privados e as contribuições marginais sociais de cada agente. Essas condições são tão importantes que merecem siglas especiais. Também mostrarei outras condições importantes:

FA (full appropriation): alinhamento entre os excedentes privados e as contribuições marginais sociais de cada agente.
PEDS (perfectly elastic demands and supplies): os indivíduos enfrentam ofertas e demandas perfeitamente elásticas.

A importância dessas condições para a competição perfeita se torna evidente quando estudamos a propriedade de eficiência da competição perfeita. Antes, porém, preciso mencionar alguns problemas relativos à informação assimétrica. Aprendemos nos livros textos que há dois tipos de informação privada: informação oculta e ação oculta. Em outras palavras, existem problemas de adverse selection e moral hazard.

Qual é a vantagem de se redefinir competição perfeita como FA com relação aos problemas de informação assimétrica? Mais uma vez, Ostroy recorre aos antigos economistas, desta vez Leonid Hurwicz, o pai da moderna teoria de mechanism design. Os termos adverse selection e moral hazard ganharam fama nos anos 70 com os artigos seminais de Stiglitz, Oliver Hart e outros. Mas Hurwicz, nos anos 60, dividia os problemas informacionais de modo diferente. Em vez da dicotomia informação oculta versus ação oculta, ele os dividia em problemas de privacy (privacidade) e problemas de delivery (entrega). Problemas de privacidade são aqueles problemas alocativos que resultam do fato de o indivíduo conhecer suas próprias valorações e suas possibilidades de produção melhor que qualquer um. Problemas de entrega são aqueles em que um indivíduo é mais bem informado sobre a qualidade ou as características de um bem que ele comercia numa transação, como a qualidade do seu carro, por exemplo, que pode ser um lemon ou um peach, ou ainda se o manager exercerá esforço alto ou baixo. Assim, problemas de privacidade são um subconjunto dos problemas de informação oculta. Tudo o mais são problemas de entrega, ou seja, problemas de entrega englobam todos os problemas de ação oculta (ou moral hazard) e alguns problemas de informação oculta (ou adverse selection).

O fato é que Ostroy mostrou que a competição perfeita resolve todos os problemas de privacidade (a compatibilidade de incentivos e as restrições de revelação vão ficando mais fracas com a competição), mas não resolve os problemas de entrega, pois há neles deadweight losses irrecuperáveis. Pense nas rendas informacionais que têm de ser pagas em problemas do tipo Principal-Agent. Os problemas típicos de privacidade são aqueles estudados em mechanism design aplicados, por exemplo, à alocação de bens públicos em que a valoração do bem a ser ofertado é informação privada. A área de estudos aqui são os chamados mecanismos de Vickrey-Clarke-Groves.

6. Por que o equilíbrio é eficiente?

Quem já estudou a demonstração do primeiro teorema do bem-estar deve ter notado a sua simplicidade e deve ter visto nela apenas uma aplicação matemática do teorema de separação de Minkovski. É uma demonstração essencialmente geométrica. O que há por trás dele? Onde está a economia? Por que, afinal de contas, o equilíbrio é eficiente?

Outro artigo seminal de Ostroy & Makowski foi publicado em 1995 na American Economic Review: “Appropriation and efficiency: a revision of the first theorem of welfare economics”. Nesse artigo, eles revelam toda a economia que está por trás do Primeiro Teorema do Bem-Estar, segundo o qual o equilíbrio walrasiano é Pareto-eficiente.

Se os agentes são competitivos, eles não vão se satisfazer com as imposições teóricas de price-taking, market-taking, mercados completos e ausência de comportamento estratégico. Eles vão agir e procurar alternativas que lhes deem mais excedentes do que aqueles que receberam em equilíbrio. É como se o caminho para o equilíbrio ainda não tivesse chegado ao fim apenas porque as hipóteses tradicionais do modelo walrasiano simplesmente fecham as portas pro comportamento competitivo dos agentes. Logo, qual o sentido da eficiência de Pareto de um equilíbrio walrasiano? Se os agentes podem aumentar o excedente total com racionalidade individual, então a alocação walrasiana não é necessariamente eficiente, a não ser que o conceito de Pareto-eficiência seja o tradicional, supondo que os agentes são tomadores de preços e de mercados e estes sejam completos. Os autores então mantêm o conceito tradicional de eficiência para economias walrasianas, mas criam o conceito de eficiência global para o modelo de equilíbrio geral reformulado com a ajuda dos dois pilares do marginalismo: o tradicional pilar do marginalismo da mercadoria e (eis a novidade!) o pilar do marginalismo no indivíduo. Esse modelo reformulado do equilíbrio geral foi denominado por eles de modelo de escolha ocupacional, pois os agentes são livres pra escolher que tipo de agente eles serão, quais serão seus conjuntos de trocas líquidas, suas capacidades tecnológicas etc. Esse processo competitivo é modelado por um jogo de Nash. Cada perfil de ações estabelece uma economia com equilíbrio walrasiano. Porém, as hipóteses do jogo asseguram que o jogo tenha um equilibrio de Nash em estratégias puras e que esse equilíbrio seja Pareto-eficiente. Assim, o equilíbrio de Nash inclui a escolha ocupacional dos agentes e o equilíbrio walrasiano determinado pelas escolhas ocupacionais. As escolhas ocupacionais basicamente definem a economia que os agentes querem ter.

Desde Edgeworth, um dos ingredientes da competição perfeita são os grandes números. Essa ideia só foi formalizada por Lionel McKenzie e Robert Aumann nos anos 60. O grande número de agentes permite que compradores e vendedores tenham outside options, isto é, alternativas com as quais os compradores joguem vendedores contra vendedores e os vendedores compradores contra compradores. Aumann modelou isso com um continuum de agentes.

Nos anos 70 havia, na teoria de equilíbrio geral, uma distinção entre duas estruturas de mercado distintas: thick markets e thin markets, ou seja, mercados espessos e mercados finos. A literatura de equilíbrio geral, em suas hipóteses tradicionais de grande número de agentes, mercados completos, número finito de bens homogêneos e comportamento price-taking e market-taking tem essencialmente sido, muitas vezes sem saber, apenas uma versão simplificada da estrutura de mercados espessos. Ostroy retoma essas estruturas e mostra como a eficiência de Pareto sob competição perfeita é alcançada nas duas.

Os mercados são espessos se há um grande número de compradores e vendedores, um número fixo de mercadorias homogêneas, mercados completos e se os agentes enfrentam ofertas e demandas perfeitamente elásticas. Essa é a ideia de Joan Robinson, exposta em seu famoso artigo dos anos 30 sobre competição perfeita. Joan Robinson foi aluna de Marshall, by the way. Note como, mais ou menos, a estrutura de mercados espessos se aproxima das hipóteses tradicionais. A diferença é que o comportamento price-taking é substituído pela condição de ofertas e demandas perfeitamente elásticas. A primeira condição acima será destacada:

Padronização: grande número de compradores e vendedores, um número fixo de mercadorias homogêneas, mercados completos.

Vamos fugir agora dessas condições. Imagine que os bens sejam heterogêneos, isto é, pode haver diferenciação de mercadorias, competição monopolística etc. Imagine também que os preços são fragmentados e dispersos, que é a crítica de Hayek, ou melhor, um de seus grandes insights sobre a economia de mercado. O que existe na verdade são informações locais de preços. Um padeiro só tem que saber e levar em conta alguns preços. Não tem sentido exigir que ele tenha informação perfeita sobre todos os preços da economia. Hayek mostrou que o sistema de preços, ainda que fragmentado e disperso, transmite as informações de escassez, necessidade e abundância praticamente sem custos. As informações locais de preços são consistentes no sentido de elas serem como peças de um quebra-cabeça que se juntam para formar um vetor de preços completo e de tal maneira que, se esse vetor de preços fosse conhecido de todos, tal conhecimento não alteraria as decisões de troca. A ideia de Hayek da eficiência informacional dos preços é descrita na seguinte condição:

Consistência: as informações locais de preços são consistentes.

Precisamos de mais algumas condições, que servem pra qualquer das estruturas:

Regularidade: os indivíduos podem restringir suas possibilidades de troca e estabelecer limites à capacidade de oferta e podem escolher não participar da economia.
NC (non-complementarity): a função de ganhos socais é sub-aditiva, isto é, mudanças coordenadas de ocupação não são melhores que mudanças individuais.

A condição NC tem a ver com a eliminação de convexidades que se manifestam em falhas de coordenação, como no famoso problema de inovação do software-hardware. Os dois são inventados por agentes distintos e um não funciona sem o outro, mas existe falha de coordenação e nenhum dos dois produtos é lançado. A condição NC diz que tal estado de coisas não pode ocorrer. Se ocorrer, haverá ineficiências.

Finalmente posso agora apresentar um diagrama que resume a caixa-preta por trás da eficiência global do equilíbrio ocupacional de Ostroy, que é o equilíbrio de Nash resultante da competição perfeita e que embute o equilíbrio walrasiano para a economia determinada pelo equilíbrio de Nash. Em primeiro lugar, as condições tradicionais de price-taking, market-taking e mercados completos são equivalentes a mercados espessos e regularidade:

[comportamento price-taking, comportamento market-taking, mercados completos] ←→ [regularidade, mercados espessos]

O que leva à eficiência global do equilíbrio ocupacional são as condições de FA e NC. Agora, em cada estrutura diferente de mercados (espessos e finos), há condições próprias que implicam FA e NC. Em mercados espessos, as condições de regularidade, padronização e PEDS implicam FA e NC. Em mercados finos, precisamos regularidade, consistência e PEDS.

mercados espessos:
[regularidade, padronização, PEDS] → FA e NC → eficiência global.
mercados finos:
[regularidade, consistência, PEDS] → FA e NC → eficiência global.

No QUADRO 2 coloco as respostas da reformulação de Ostroy às críticas ao modelo walrasiano tradicional:

QUADRO 2. Críticas e respostas.
(A) SCHUMPETER. Problema: O modelo walrasiano não comporta a inovação. Solução: Sob competição perfeita, o agente pode inovar, desde que não haja falhas de coordenação e ele internalize sua CMS, ou seja, que haja FA. Ao contrário do que dizia Schumpeter, o processo de inovação não é uma ruptura com o equilíbrio geral e muito menos incompatível com a competição perfeita: é, antes, uma expressão autêntica da competição perfeita e pode ocorrer em equilíbrio.
(B) ISRAEL KIRZNER. Problema: O empresário do mundo real é ativo, criativo e alerta e em nada se parece com o empresário autômato do mundo walrasiano. Solução: Sob competição perfeita, o empresário é ativo e alerta e pratica arbitragem, tal como Kirzner defende. O alertness se manifesta em seu comportamento estratégico mesmo em um equilíbrio walrasiano, que é eficiente, mas que poderia ainda não ser globalmente eficiente. Ao contrário, porém, de Kirzner, que dizia que a competição (e toda a economia interessante) ocorria fora do equilíbrio, ela pode ocorrer também em equilíbrio.
(C) HAYEK. Problema: O conhecimento de preços é fragmentado e disperso na economia. Solução: Sob competição perfeita, os agentes podem ter apenas conhecimento fragmentado dos preços, ou seja, Hayek estava certo, se considerarmos também as ideias de Joan Robinson.
(D) JOAN ROBINSON. Problema: Na competição não há preços dados, o que há são ofertas e demandas perfeitamente elásticas. Solução: Sim, é verdade, sob competição perfeita os agentes enfrentam ofertas e demandas perfeitamente elásticas, nas regiões relevantes de suas atividades; condição esta que, junto com as condições de padronização e regularidade, implica que, em mercados espessos, price-taking, market-taking e mercados completos façam sentido. Já em mercados finos, Joan Robinson precisa de Hayek para que exista FA e NC e, portanto, eficiência global. No modelo de escolha ocupacional de Ostroy, os preços surgem do comportamento competitivo dos agentes, eles não são dados, como no modelo walrasiano. Em Walras, preços precedem maximização. Em Ostroy, a maximização precede os preços. As condições listadas garantem que os agentes joguem um jogo em que o equilíbrio de Nash será Pareto-dominante e é esse equilíbrio de Nash que determinará os parâmetros da economia para a qual o equilíbrio de Walras será globalmente eficiente, não apenas Pareto-eficiente.
(E) COASE. Problema: Existem divergências entre benefícios e custos marginais privados e sociais, algo que o modelo walrasiano não aborda. Solução: Sob competição perfeita, existe alinhamento entre benefícios e custos marginais privados e sociais, de modo que o equilíbrio geral, sim, aborda essa questão, desde que se compreenda que competição perfeita é FA.
(F) HURWICZ. Problema: Os agentes são oportunistas e têm comportamento estratégico em função de informação privada. Solução: Sob competição perfeita, os indivíduos podem ser oportunistas e a competição perfeita resolve a maioria dos problemas de seleção adversa, aqueles que são caracterizados como privacy, mas não resolve alguns problemas de adverse selection e todos os de moral hazard, aqueles que são denominados como problemas de delivery.

7. As ramificações da abordagem pigoviana de Ostroy

Um aspecto matemático importante da abordagem pigoviana de Ostroy é que o problema alocativo do equilíbrio geral pode ser modelado por uma programação linear em dimensão infinita. O famoso marriage problem formulado por Shapley e Shubik nos anos 60 e que deu origem à moderna literatura de matching (que deu o Nobel a Alvin Roth, mas cujos resultados mais pesados foram demonstrados por Marilda Sotomayor) é tão-somente um caso particular, ou melhor, é da mesma família de problemas.

A CMS de um agente mede o impacto de sua presença sobre os ganhos sociais de troca. Se o problema alocativo é o de maximizar os ganhos sociais de troca, então é evidente que o CMS de um indivíduo é o seu shadow-price. O shadow-price ou multiplicador de Lagrange é obtido pelo problema dual associado ao problema primal da alocação ótima. A dualidade é um arcabouço matemático com imensa riqueza econômica, técnica infelizmente pouco conhecida em nossas lides e de difícil aprendizado, uma vez que é em dimensão infinita e requer uma forte base de Análise Funcional, Teoria da Medida e Teoria dos Operadores. Se um estudante quiser adquirir essa base, terá que passar por um curso completo de Análise no Rn, um curso de Teoria da Medida e um curso de Topologia Geral, além de ter suficiente maturidade matemática. É uma formação que vai depender exclusivamente da disciplina do aluno. Não é uma trajetória trivial.

É pela dualidade que se deram as ramificações da abordagem de Ostroy em equilíbrio geral, pois a condição de FA é caracterizada precisamente pela solução dual. O uso da programação linear em dimensão infinita e da dualidade em equilíbrio com bens públicos apareceu no artigo, de 1992, “Vickrey-Clarke-Groves mechanisms in continuum economies: characterization and existence”, no Journal of Mathematical Economics, mas uma versão mais light aparece em um artigo anterior, de Makowski & Ostroy, de 1987, “Vickrey-Clarke-Groves mechanisms and perfect competition”, no Journal of Economic Theory.

Para desenho de mecanismos, o artigo de 1999 de Makowski, Ostroy e Uzi Segal, “Efficient incentive compatible economies are perfectly competitive”, no Journal of Economic Theory, e o artigo de Belén Jerez, de 2003, “A dual characterization of incentive efficiency”, no Journal of Economic Theory.

O modelo de assignment, um caso mais geral que os modelos de matching, pode ser usado para estudar a competição perfeita em equilíbrio geral. O artigo para isso é o de Gretsky, Ostroy e Zame, de 1999, “Perfect Competition in the Continuous Assignment Model”, no Journal of Economic Theory.

No sistema de pagamentos, a abordagem dual em dimensão infinita para determinação dos shadow-prices de bancos e a determinação de políticas monetárias ótimas de intradia com base na condição de FA pode ser encontrada no artigo de Peñaloza de 2009, “A duality theory of payment systems”, no Journal of Mathematical Economics. A formulação, nesse paper, é uma versão variacional do modelo de assignment em dimensão infinita e mostra como políticas monetárias de intradia personalizadas podem fazer com que os bancos internalizem seus preços-sombra para o fluxo ótimo dos pagamentos interbancários, eliminando o custo de liquidez que existe no sistema de pagamentos em razão da retenção das reservas e outras restrições.

A dualidade na caracterização do equilíbrio competitivo com fricções em modelos de search pode ser encontrada no artigo de Belén Jerez, publicado em 2014 no Journal of Economic Theory, “Competitive equilibrium with search frictions: a general equilibrium approach”.

Nos últimos dez anos as ideias de Ostroy sobre competição perfeita, FA e dualidade têm sido aplicadas à teoria de leilões de pacotes e leilões ascendentes, embora o primeiro artigo nessa área seja o de Friedman & Ostroy, de 1995, “Competitivity in auction markets: an experimental and theoretical investigation”, no Economic Journal. Há ainda os artigos de Bickshandani & Ostroy, de 2006, “Ascending price Vickrey auction”, no Games and Economic Behavior, e um artigo de 2002, também de Bickshandani & Ostroy, “The package assignment model”, no Journal of Economic Theory.

Por fim, coloco as referências citadas, mas obviamente elas são apenas uma parcela pequena. A que eu mais recomendo, entretanto, é Makowski & Ostroy (2001): “Perfect competition and the creativity of the market”, Journal of Economic Literature, 39, pp. 479–535.

Referências
Bickshandani, S. and J. Ostroy. 2002. “The package assignment model”, no Journal of Economic Theory 107, pp. 377–406.
Bickshandani, S. and J. Ostroy. 2006. “Ascending price Vickrey auction”, Games and Economic Behavior 55, pp. 215–241.
Friedman, D. and J. Ostroy. 1995. “Competitivity in auction markets: an experimental and theoretical investigation”, Economic Journal 105, pp. 22–53.
Gretsky, N., J. Ostroy, and W. Zame. 1999. “Perfect competition in the continuous assignment model”, Journal of Economic Theory 88:1, pp. 60–118.
Hayek, Friedrich A. 1945. “The use of knowledge in society”, American Economic Review 35:4, pp. 519–30.
Jerez, B. 2003. “A dual characterization of incentive efficiency”, Journal of Economic Theory 112, pp. 1–34.
Jerez, B. 2014. “Competitive equilibrium with search frictions: a general equilibrium approach”, Journal of Economic Theory 153, pp. 252–286.
Kirzner, I. 1973. Competition and Entrepreneurship. Chicago: U. Chicago Press.
Makowski, L. and J. Ostroy. 1987. “Vickrey-Clarke-Groves mechanisms and perfect competition,” Journal of Economic Theory 42:2, pp. 244–61.
Makowski, L. and J. Ostroy. 1992. “Vickrey-Clarke-Groves mechanisms in continuum economies: characterization and existence”, Journal of Mathematical Economics 21:1, pp. 1–35.
Makowski, L. and J. Ostroy. 1995. “Appropriation and efficiency: a revision of the first theorem of welfare economics”, American Economic Review 85:4, pp. 808–27.
Makowski, L. and J. Ostroy. 1998. “Arbitrage and the flattening effect of large numbers”, Journal of Economic Theory 78:1, pp. 1–31.
Makowski, L., J. Ostroy, and U. Segal. 1999. “Efficient incentive compatible economies are perfectly competitive”, Journal of Economic Theory 85:2, pp. 169–225.
Makowski, L. and J. Ostroy. 2001. “Perfect competition and the creativity of the market”, Journal of Economic Literature, 39, pp. 479–535.
Mas-Colell, A. 1980. “Noncooperative approaches to the theory of perfect competition: presentation,” Journal of Economic Theory, 22(2), 121–135.
Ostroy, J. 1980. “The no-surplus condition as a characterization of perfectly competitive equilibrium”, Journal of Economic Theory 22:2, pp. 183–207.
Ostroy, J. 1984. “A reformulation of the marginal productivity theory of distribution”, Econometrica 52:3, pp. 599–630.
Peñaloza, R. 2009. “A duality theory of payment systems”, Journal of Mathematical Economics 45 (9–10), pp. 679–692.
Pigou, A. 1932. The Economics of Welfare, 4th ed. London: Macmillan.

Rodrigo Peñaloza
Rodrigo Peñaloza

Written by Rodrigo Peñaloza

PhD in Economics from UCLA, MSc in Mathematics from IMPA, Professor of Economics at the University of Brasilia.

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