Conjunto orçamentário ou conjunto de oportunidades?
Quando lhe disserem que as restrições do consumidor são dadas por aquele tradicional e geometricamente bem-comportado conjunto orçamentário linear que encontramos nos manuais de economia, pX+qY=r, tenha em mente que esse é, na verdade, apenas o caso particular no qual as trocas são mediadas por um sistema de preços constantes (que é um aspecto institucional), mas que o conjunto orçamentário é algo mais geral que isso. Antes, porém, é preciso esclarecer conceitos elementares que ainda hoje são mal compreendidos e cuja manipulação serve de munição retórica para denegrir a Teoria Econômica, especialmente por parte daqueles que se comprazem em fazer de uma caixa preta o buraco negro de suas fantasias acadêmicas.
Dada a inevitabilidade da escassez, para cada unidade adicional do bem X, você sacrifica alguma quantidade do bem Y (na unidade de tempo, digamos: semana) de modo a se sentir indiferente. Essas taxas de troca não precisam ser constantes (embora satisfaçam certas propriedades razoáveis), pois elas apenas especificam o quantum do bem Y que você está disposto a sacrificar pela unidade adicional de X. Esse quantum sacrificado de Y é o valor marginal da unidade de X. O locus desses pontos perfaz a curva de indiferença.
Observe que esse valor não é um valor monetário, mas uma quantidade (na unidade de tempo, por exemplo a semana). Você compara quantidades, e não valores monetários. Somente quando as trocas são feitas via sistema de preços é que se pode expressar o quantum sacrificado em termos monetários. A relação TMS = ΔY/ΔX entre o quantum ΔY que o indivíduo sacrifica, no período e de modo a ficar indiferente, em troca do quantum adicional ΔX é o que denominamos taxa marginal de substituição.
Esse é um lado da história e tem a ver com o conceito clássico de valor de uso, só que na margem. Tanto que Alchian e Allen (em Exchange and Production) sugerem o nome valor marginal subjetivo de uso. O outro lado da história tem a ver com a troca efetivente realizada no mercado. É o aspecto institucional. Se a troca se dá no mercado com preços constantes para cada bem, digamos p para o bem X e q para o bem Y, de onde provém a restrição orçamentária pX+qY=r, em que r é a renda, então pela unidade adicional ΔX o indivíduo pagará pΔX, mas economizará qΔY pelo quantum de Y que deixará de consumir em seu padrão semanal de consumo. Enquanto não alcançar a igualdade pΔX=q(-ΔY), ou seja, ΔY/ΔX=-p/q, valerá a pena fazer ajustes marginais no padrão semanal de consumo. O sinal negativo vem do fato de que, se ΔX>0, então ΔY<0. É por isso que a condição de primeira ordem do problema do consumidor é o sistema:
- TMS=-p/q
- pX+qY=r
em que TMS=ΔY/ΔX. O locus de soluções é a curva de demanda marshalliana.
Em nenhum momento falamos de função utilidade e muito menos de utilidade marginal. A TMS é um conceito real no sentido de depender apenas de quantidades observáveis, embora subjetivo (a preferência se revela pelo ato da escolha, já nos alertava Paul Samuelson). O fato é que, se você optar partir da modelagem de maximização de uma função utilidade u(X,Y) sujeita à restrição pX+qY=r, então você chegará às condições usuais de livro-texto:
- -(∂U/∂Y)/(∂U/∂X)=-p/q
- pX+qY=r
Como a valoração marginal de cada unidade de X mantém a indiferença, fica fácil entender por que no modelo de maximização a TMS se define pelo negativo da razão entre as utilidades marginais, TMS=-(∂U/∂Y)/(∂U/∂X). É porque à equação u(X,Y)=constante aplicamos o Teorema da Função Implícita para isolar a derivada Y’(X). Com efeito, fazendo Y como função de X na equação u(X,Y)=constante, isto é, u(X,Y(X))=constante, derivamos em relação a X em ambos lados para obter:
∂U/∂X+(∂U/∂Y)Y’(X)=0
de onde Y’(X)=-∂U/∂X/(∂U/∂Y). Ora, Y’(X) nada mais é que o limite da razão incremental ΔY/ΔX, que é a TMS corretamente compreendida. Assim, podemos identificar a TMS corretamente definida com a ideia de razão entre utilidades marginais. O caminho da modelagem da maximização da utilidade no conjunto orçamentário é um caminho alternativo ao modus cogitandi correto que leva às mesmas conclusões.
Você não precisa falar de função utilidade ou de utilidade marginal. Você só precisa saber pensar como economista e compreender que a Matemática é uma linguagem, não uma imposição epistêmica sobre agentes econômicos que supostamente agem como computadores ambulantes. Você pode verificar esses conceitos em livros de bons economistas, como os de Gary Becker (Economic Theory), de Donald McCloskey (The Applied Theory of Price) (antes de mudar para Deirdre) e de Armen Alchian e William Allen (University Economics ou sua reedição moderna renomeada como Universal Economics).
No caso tridimensional (3 bens: X, Y e Z), a valoração marginal da unidade adicional de X pode ser dada, conforme a opção do analista, apenas em termos do quantum sacrificado de Y, apenas do de Z ou mesmo dos dois bens Y e Z conjuntamente. Em termos matemáticos temos, assim, as derivadas parciais e as derivadas direcionais: não tem diferença qual seja a sua opção. Quando pensamos no quantum de Y que se sacrifica pela unidade de X, temos uma análise ceteris paribus, mas, se você quiser, pode considerar o pacote de quanta de Y e Z que você está disposto a sacirificar pela unidade de X. Entende-se, agora, o que, de fato, é a análise ceteris paribus.
Voltemos ao conjunto orçamentário pX+qY=r. Essa é uma restrição de natureza institucional, ou seja, tem a ver com aquilo que os economistas costumam chamar de regras do jogo. No caso em pauta, a regra é: “faça as trocas no mercado a preços dados”. Precisa ser assim? Não!
O formato do conjunto orçamentário (budget set) no caso bidimensional usualmente usado nos manuais para ilustrar o conceito não é, necessariamente, linear: pode ser qualquer coisa, desde que sua fronteira seja uma curva decrescente. Essa curva decrescente caracteriza justamente o fenômeno da escassez: o fato de que a escolha vem sempre associada a algum sacrifício. Quando se trata de produção, temos o conjunto de possibilidades de produção. Observe a simetria do conceito quando aplicado às ações de consumo e de produção.
O termo “conjunto orçamentário” (budget set) é, infelizmente, misleading, pois induz o estudante a acreditar que o consumidor só realiza trocas no mercado mediado por um sistema de preços institucionalmente bem definido, ou seja, por transações monetárias de direitos de propriedade. Gary Becker usa um termo mais apropriado: opportunity set (“conjunto de oportunidades”). Um exercício típico à la Becker é: “diante de restrições institucionais às trocas (quotas etc.), desenhe o conjunto de oportunidades”.
O homem das cavernas, quando tem que se alimentar naquele dia, faz uma escolha: caçar ou pescar? Se ele caçar, sacrifica o peixe que obteria; se pescar, sacrifica a carne. Essa troca não é materializada em termos monetários, porque o troglodita não usa um numerário, nem mesmo um papel-moeda. Por outro lado, Mater Natura, quando com ele interage, não oferece animais e peixes a taxas constantes de troca (preços relativos constantes). A cada vez essa taxa pode variar. O relevante é que ela será decrescente no plano XY em razão da escassez. Essa disponibilidade da Natureza pode ser descrita por uma função F(X,Y) crescente e côncava, pois assim, ao escrevermos Y=f(X), para alguma função implícita f, teremos f’(X) positiva e decrescente. Essa derivada f’(X) é o limite da razão ΔY/ΔX sob a ótica da contraparte da transação. Neste caso, Mater Natura. Na transação, as duas taxas (as duas partes da transação) se igualarão. No caso particular em que F(X,Y) = pX+qY, então f’(X)=-p/q.
Isso ilustra o fato de que esse conceito básico aplica-se a qualquer tempo e espaço. Não é verdade que a Teoria Econômica, em seus fundamentos, seja uma teoria do “capitalismo”. Como nos lembram Alchian e Allen, os princípios econômicos valem para qualquer sistema, não existe uma teoria econômica diferente para o “capitalismo” e outra para o socialismo.
Não entender esse aspecto crucial das restrições do consumidor gera equívocos.
Existe uma charada famosa na Teoria Econômica, que tanto Paul Heyne como David Friedman (o filho de Milton Friedman) contam em seus livros. O cara vê um carrão de luxo e diz: “Eu queria muito ter esse carro”. O economista do lado dele então comenta: “Você não queria não”. O puzzle é: “Como economista, explique por quê”. Quando pergunto isso, muita gente responde (e debocha) dizendo que o carro simplesmente estava fora do conjunto orçamentário do agente, no sentido de que era caro demais para ele. Essa é a resposta errada. Se ele quisesse, ele poderia vender tudo que tem, comprar bilhetes de loteria, aumentar sua chance de ganhar e assim comprar o carro. Porém, mesmo neste caso, bastaria simplesmente considerar um modelo mais geral de escolha intertemporal com loterias. O fato é que o agente pode agir fora do mercado legal, por exemplo, se associando a partidos políticos controlados por bandidos para, ganhando as eleições com a ajuda de juízes inescrupulosos, assim roubar e conseguir o dinheiro, em cujo caso os sacrifícios incorridos podem incluir a perda da dignidade, do respeito próprio e público e a perda de todo senso moral. Esses sacrifícios não são transacionáveis no mercado via preços monetários. Logo, o conjunto de oportunidades não é o tradicional conjunto orçamentário linear.
Em suma, ao falar das restrições do consumidor, mantenha sua mente aberta e não se esqueça de que as primitivas da teoria do consumidor não são as preferências, como muita gente repete se baseando nos manuais do Varian, Nicholson, Mas-Collell e outros, mas sim a escassez e a dualidade escolha×sacrifício. Os manuais destes últimos autores são bons, só que são textos didáticos que muitas vezes, no afã de simplificar a exposição para tornar os conceitos mais palatáveis em termos geométricos e matemáticos, ocultam os reais significados econômicos dos termos. Bons estudos!