Da língua grega, liberdade e democracia

Rodrigo Peñaloza
4 min readNov 25, 2023

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Eu tenho a percepção de que a cultura grega clássica, como especificamente manifestada pelo idioma grego, em quaisquer de suas formas (ática, jônica, eólica e dórica, à exceção do koiné, que é mais tardia), nos dá uma certa base pra entender porque a mente grega concebeu a ideia de democracia. É consenso entre os linguistas - e eu particularmente concordo muito com isso - que a língua revela muito da psiquê do povo que a fala.

Há duas coisas no Grego antigo que me fizeram pensar na democracia como algo que já havia em germe na mente grega. Uma é o dual. A gente tem o singular e o plural, mas o grego tinha além desses dois números (tanto para os substantivos, adjetivos e pronomes como para os verbos) o número dual para se referir especificamente a duas pessoas, por exemplo, “eles dois” e “vós dois”. O outro elemento são os tempos (ou melhor, os aspectos) do imperativo, que são o imperativo presente e o imperativo aoristo. Este denota um comando instantâneo e pontual, aquele um comando que tem caráter de lei e que deve ser continuado.

O uso do dual, que era mais comum na época homérica, mas que se esvaeceu ao longo do tempo, transmite uma ideia de caminho da individualidade determinada rumo à coletividade indeterminada. O dual é um plural em que o indivíduo ainda pode ser identificado e determinado, é o indivíduo imerso no coletivo sem contudo perder a identidade e a especificidade. É o que, num certo grau, ocorre na democracia no que concerne à representatividade majoritária, na qual, embora diluído numa coletividade, o indivíduo ainda tem sua voz representada. O dual é típico dos idiomas indo-europeus, embora também ocorra nas línguas semíticas e até nalgumas asiáticas. Entretanto, eu penso que nos idiomas indo-europeus, especialmente o grego, principalmente por outros fatores culturais, o dual foi uma manifestação linguística que surgiu em decorrência de um aspecto próprio da mente grega que era a valoração da liberdade, algo que não havia em outros povos não indo-europeus e que talvez não tenha havido em alguns notadamente indo-europeus. É que na Grécia, como disse, pesaram outros fatores que, ao meu ver, fizeram o dual ser uma espécie de símbolo linguístico dessa característica peculiar da mente grega, ainda que tenha morrido tão cedo.

Já a diferença entre os imperativos presente e aoristo denota a capacidade que a mente grega tinha de separar comandos localizados de comandos com caráter de lei. Isso nos diz que na própria fala o grego manifestava a separação íntima que fazia entre o público e o privado. O reconhecimento dessa separação é fundamental para o surgimento da democracia, pois simboliza a concepção segundo a qual a lei pública existe para normatizar a sociedade, mas ainda assim o indivíduo é livre para normatizar sua vida no âmbito privado. Os modos do verbo grego tem duas vertentes: o tempo e o aspecto. Nós só temos o tempo (passado, presente e futuro), mas o grego tinha também o aspecto. O aoristo quando aplicado ao imperativo não é um tempo (literalmente é um tempo passado indeterminado, diferente do perfeito e do imperfeito), mas um aspecto, que diz exatamente da pontualidade e da localização. Evidentemente essas são características gerais dos idiomas indo-europeus, ou ainda, daquilo que se concebe como tendo sido o idioma proto-indo-europeu e todas as suas ramificações futuras. Mas na Grécia essas características expressaram perfeitamente aquilo que já havia na mente daquele povo tão singular.

Para mim, é muito claro que o fato de a democracia ter surgido na Grécia não é apenas o resultado de uma sequência de eventos históricos, como a herança psíquica que Péricles deixou na Grécia. A individualidade sempre foi importante para o grego. Não é à toa que os gregos tiveram tantas dificuldades em unir as cidades-estado numa nação coesa. E tanto é assim que as cidades-estado só se uniam quando viam a liberdade ameaçada, como foi o caso das guerras persas. A própria língua grega nos dá pistas disso e, sinceramente, acredito que se atentássemos mais para a fala do povo, teríamos insights muito profundos sobre a forma como um povo pensa. Uma prova disso é que as ideias democráticas renasceram no século XVIII em consequência de dois séculos de retorno à cultura clássica, especialmente à cultura grega. Agora não mais em razão da psiquê grega manifestada na língua, mas talvez em razão de algo que já se tornara arquetípico na mente dos pensadores renascentistas: que liberdade e democracia eram concepções genuinamente gregas.

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Rodrigo Peñaloza
Rodrigo Peñaloza

Written by Rodrigo Peñaloza

PhD in Economics from UCLA, MSc in Mathematics from IMPA, Professor of Economics at the University of Brasilia.

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