Julgamento, não condenação

Rodrigo Peñaloza
3 min readJan 3, 2024

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Em João 5:29 se diz, na versão original grega: “καὶ ἐκπορεύσονται, οἱ τὰ ἀγαθὰ ποιήσαντες εἰς ἀνάστασιν ζωῆς, οἱ δὲ τὰ φαῦλα πράξαντες εἰς ἀνάστασιν κρίσεως”. Na versão latina da Vulgata a tradução é fiel à versão grega. Nela se lê: “et procedent qui bona fecerunt in resurrectionem vitae, qui vero mala egerunt in resurrectionem iudicii”. Esse versículo assim se traduz: “e procederão os que tiverem feito o bem para a ressurreição da vida e os que tiverem praticado o mal para a ressurreição do julgamento”.

Um problema pode surgir com o substantivo ἀνάστασις (que, no versículo, está no acusativo), que normalmente se traduz por “ressurreição”, mas que também pode significar “levantamento, erguimento” ou “remoção de um lugar”. O sentido de ressurreição ou reerguimento dentre os mortos já aparece em Ésquilo, na peça Eumenides (Orestéia 3), no verso 648 da sequência 647-648), na boca de Apolo: ἀνδρὸς δ᾽ ἐπειδὰν αἷμ᾽ ἀνασπάσῃ κόνις ἅπαξ θανόντος, οὔτις ἔστ᾽ ἀνάστασις, o que se traduz: “mas sempre que o pó sorve o sangue do homem, tendo morrido definitivamente, para ninguém há ressurreição”.

O sentido de remoção aparece em Tucídides (A Guerra do Peloponeso, 1.133: ἀλλὰ πίστιν ἐκ τοῦ ἱεροῦ διδόντος τῆς ἀναστάσεως καὶ ἀξιοῦντος ὡς τάχιστα πορεύεσθαι καὶ μὴ τὰ πρασσόμενα διακωλύειν).

Até aí tudo bem. O problema é a tradução portuguesa da versão Almeida, que traduziu o termo grego κρίσις e o correspondente latino iudicium - que têm o sentido de separação, distinção (eis o sentido primevo de “juízo, julgamento”) - por “condenação”: “E os que fizeram o bem sairão para a ressurreição da vida; e os que fizeram o mal para a ressurreição da condenação”. Como é que um julgamento se transformou, de repente, em condenação? Jesus diz que os que praticaram coisas más serão julgados, mas a versão Almeida já os condenou. A tradução da King James (a tradicional versão americana) traduz κρίσις por “danação”: “And shall come forth; they that have done good, to the resurrection of life; and they that have done evil, to the resurrection of damnation”. “Damnation” reproduz o sentido do substantivo latino damnatio, que significa a condenação, ou seja, o julgamento já ocorreu e a condenação se cumpre. Era assim que se dizia damnatio ad metala (condenação ao trabalho forçado nas minas), damnatio ad bestias (condenação à morte pelas feras) etc.

Traduzir κρίσις, que é o julgamento, a separação (ou seja, que do fato confuso se separa o fato verdadeiro, de modo a tornar distinto o que antes era indistinto) por “condenação” é uma expansão semântica. A única fonte grega que Lidell-Scott apresentam como tendo o sentido de “condenação, resultado de um julgamento” é Xenofonte, que em Anábasis, 1.6.5, escreve sobre Clearchus relatando como Ciro julgou Orontas: ἐπεὶ δ᾽ ἐξῆλθεν, ἀπήγγειλε τοῖς φίλοις τὴν κρίσιν τοῦ Ὀρόντα ὡς ἐγένετο: οὐ γὰρ ἀπόρρητον ἦν. Isso se traduz: “Quando ele [Clearchus] chegou, relatou aos amigos como aconteceu o julgamento de Orontas, pois não era segredo”. De fato, a partir daí Xenofonte descreve o relato que Clearchus fez do julgamento.

Não se trata, portanto, da decisão do julgamento especificamente, mas do julgamento. Trata-se do processo, não do resultado.

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Rodrigo Peñaloza
Rodrigo Peñaloza

Written by Rodrigo Peñaloza

PhD in Economics from UCLA, MSc in Mathematics from IMPA, Professor of Economics at the University of Brasilia.

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