Rodrigo Peñaloza
5 min readJun 16, 2020

Kant e Kripke: algumas instâncias em que o que eles disseram é relevante para a Economia
(Rodrigo Peñaloza, out. 2019)

Uma proposição a priori é aquela cuja verdade pode ser provada somente pela razão, sem necessidade da experiência; uma proposição a posteriori é aquela cuja verdade só pode ser estabelecida pela experiência. Uma proposição necessária é aquela cuja negação é impossível; a contingente é aquela cuja negação é possível. Uma proposição analítica é aquela cuja verdade decorre apenas dos conceitos envolvidos na proposição, ou seja, quando o conceito do predicado está incluído no sujeito; o que não for analítico, é sintético. Considere as classes de opostos:

A: a priori versus a posteriori (pri x POS)
B: necessário versus contingente (nec x CON)
C: analítico versus sintético (ana x SIN)

Até Kant, tinha-se como óbvio que A=B=C, ou seja, que pri=nec=ana e POS=CON=SIN. Perceba que a minha escolha de maiúsculas e minúsculas tem um propósito didático.

Kant (século 18) concordava com a equivalência A=B, mas discordava de A=C e, por conseguinte, de B=C. Em outras palavras, ele concordava que pri=nec e POS=CON, mas admitia que pri≠ana e POS≠SIN e, portanto, que nec≠ana e CON≠SIN. Havia, portanto, duas distinções a serem feitas. Para ele, algumas proposições a priori eram sintéticas (não analíticas). São aquelas proposições cuja verdade é obtida pela razão, mas cujo conceito do predicado não está incluído no sujeito, configurando-se, assim, um conhecimento não-trivial, ou seja, não-analítico.

Saul Kripke (século 20) foi além de Kant. Segundo Kripke, há três distinções a serem feitas, não duas! Para ele:

(a) a distinção A (a priori x a posteriori) é epistemológica: entre duas rotas para o conhecimento;
(b) a distinção B (necessário x contingente) é metafísica: entre dois modos de ser;
(c) e a distinção C (analítico x sintético) é semântica: entre duas maneiras pelas quais se estabelece o valor-verdade da proposição.

Para tanto, Kripke se valeu do fato de que essas distinções têm como pano de fundo o problema da identidade e da referência. A que objeto se refere a proposição? A resposta a essa pergunta é o que conecta a nossa linguagem com a coisa real, aquilo a que se refere, mas a identidade da coisa referida deve permanecer a mesma também em outros mundos possíveis, sem o que a verdade não será necessária. Mundos possíveis são uma maneira elegante que os filósofos têm de considerar que as coisas poderiam ser diferentes.

O que Kripke fez foi formalizar, a partir da ideia de mundos possíveis aquilo que hoje se conhece por Lógica Modal. Além dos operadores usuais de quantificação, de existência e de negação, Kripke formalizou dois outros operadores: o de necessidade e de possibilidade. Estes dois operadores são reescritos como operadores de quantificação e de existência, só que aplicados ao contexto mais geral de mundos possíveis. Isso dá fundamento lógico, por exemplo, aos contrafactuais. Para a lógica modal, recomendo o livro de Fitting e Mendelsohn, First-Order Logics, Kluwer Academic Publishers, 1998. Dependendo do uso que se faz desses operadores modais, surgem os diversos tipos de lógica modal: epistêmica, deôntica, temporal, doxástica etc.

Para Kripke, existem verdades que são necessárias e a posteriori. Existem também verdades contingentes a priori. Por exemplo, “Eu existo”. Como Descartes, eu obtenho essa verdade apenas pela razão, mas eu poderia não existir. Um mundo onde eu não existisse é um mundo possível. Para lidar com o problema da identidade nos diversos mundos possíveis, Kripke refinou o conceito de referência: ele considerou o que se entende hoje por designador rígido, um termo que designa a mesma coisa em todos os mundos em que tal coisa existe. Nomes, por exemplo, são designadores rígidos. Para saber mais sobre isso, recomendo Roger Scruton, Modern Philosophy, 1994.

É a lógica modal epistêmica que dá sustentação à Teoria dos Jogos. Em particular, está presente quando dizemos que as regras do jogo, as estratégias (ou as distribuições de probabilidade sobre as estratégias, como nos jogos bayesianos) e os perfis de payoffs são conhecimento comum (common knowledge). Um evento E é conhecimento comum em um mundo possível w se, e somente se, o menor evento M contendo w que é simultaneamente auto-evidente para todos os agentes está contido em E. Em outras palavras, é auto-evidente para todos os agentes que o mundo possível w é conhecido de todos. Eventos auto-evidentes são pontos fixos do operador de conhecimento, que é a roupagem funcional do operador lógico de necessidade de Kripke. Robert Aumann ganhou o Nobel em 2005 justamente nessa área, graças ao seu paper “Agreeing to disagree” (The Annals of Statistics), de 1976. A linguagem formal que ele usa é kripkeana. Geanakoplos tem um survey sobre lógica modal epistêmica e teoria dos jogos no Handbook of Game Theory, onde você pode se aprofundar mais: “Common Knowledge,” chapter 40 in volume 2 of Handbook of Game Theory, edited by Robert Aumann and Sergiu Hart, 1994.

Quando Hans-Hermann Hoppe (Economic Science and the Austrian Method, 1995) argumenta em favor de proposições sintéticas a priori na Economia, ele o faz valendo-se de um antigo modo de demonstração: o de que a própria negação já comprova a afirmação. Por exemplo, “o homem age”. Hans-Hermann Hoppe diz que essa proposição é sintética a priori porque, ao tentarmos negá-la, agimos e, portanto, a comprovamos. Observe que o argumento de Hans-Hermann Hoppe mostra corretamente que a proposição “o homem age” é uma proposição necessária. Baseado em Kant, para quem pri=nec (já que A=B), deduz-se claramente que é também a priori. Ela será sintética na medida em que admitirmos que o agir não se predica do conceito de homem. Por exemplo, se o conceito de homem for, nos moldes tradicionais da ontologia, “animal racional”. Porém, se considerarmos as contribuições de Kripke, concluímos que não necessariamente as proposições que Hans-Hermann Hoppe diz serem sintéticas a priori são, de fato, sintéticas a priori: elas são sintéticas necessárias. Para mostrar que são a priori, é preciso avançar muito mais na argumentação. Pode ser que isso não mude nada, mas pode ser que mude. O ponto é que isso reabre uma ferida que, para os austríacos da ala de Hans-Hermann Hoppe e Mises, já se considerava fechada e cicatrizada.

Mark Blaug, estranhamente, em Economic Theory in Retrospect, diz que as proposições se dividem apenas em analíticas e sintéticas. Pra mim, ele esconde um propósito nessa omissão, mas fico por aqui.

Rodrigo Peñaloza
Rodrigo Peñaloza

Written by Rodrigo Peñaloza

PhD in Economics from UCLA, MSc in Mathematics from IMPA, Professor of Economics at the University of Brasilia.

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