Kant e Kripke: algumas instâncias em que o que eles disseram é relevante para a Economia
(Rodrigo Peñaloza, out. 2019)
Uma proposição a priori é aquela cuja verdade pode ser provada somente pela razão, sem necessidade da experiência; uma proposição a posteriori é aquela cuja verdade só pode ser estabelecida pela experiência. Uma proposição necessária é aquela cuja negação é impossível; a contingente é aquela cuja negação é possível. Uma proposição analítica é aquela cuja verdade decorre apenas dos conceitos envolvidos na proposição, ou seja, quando o conceito do predicado está incluído no sujeito; o que não for analítico, é sintético. Considere as classes de opostos:
A: a priori versus a posteriori (pri x POS)
B: necessário versus contingente (nec x CON)
C: analítico versus sintético (ana x SIN)
Até Kant, tinha-se como óbvio que A=B=C, ou seja, que pri=nec=ana e POS=CON=SIN. Perceba que a minha escolha de maiúsculas e minúsculas tem um propósito didático.
Kant (século 18) concordava com a equivalência A=B, mas discordava de A=C e, por conseguinte, de B=C. Em outras palavras, ele concordava que pri=nec e POS=CON, mas admitia que pri≠ana e POS≠SIN e, portanto, que nec≠ana e CON≠SIN. Havia, portanto, duas distinções a serem feitas. Para ele, algumas proposições a priori eram sintéticas (não analíticas). São aquelas proposições cuja verdade é obtida pela razão, mas cujo conceito do predicado não está incluído no sujeito, configurando-se, assim, um conhecimento não-trivial, ou seja, não-analítico.
Saul Kripke (século 20) foi além de Kant. Segundo Kripke, há três distinções a serem feitas, não duas! Para ele:
(a) a distinção A (a priori x a posteriori) é epistemológica: entre duas rotas para o conhecimento;
(b) a distinção B (necessário x contingente) é metafísica: entre dois modos de ser;
(c) e a distinção C (analítico x sintético) é semântica: entre duas maneiras pelas quais se estabelece o valor-verdade da proposição.
Para tanto, Kripke se valeu do fato de que essas distinções têm como pano de fundo o problema da identidade e da referência. A que objeto se refere a proposição? A resposta a essa pergunta é o que conecta a nossa linguagem com a coisa real, aquilo a que se refere, mas a identidade da coisa referida deve permanecer a mesma também em outros mundos possíveis, sem o que a verdade não será necessária. Mundos possíveis são uma maneira elegante que os filósofos têm de considerar que as coisas poderiam ser diferentes.
O que Kripke fez foi formalizar, a partir da ideia de mundos possíveis aquilo que hoje se conhece por Lógica Modal. Além dos operadores usuais de quantificação, de existência e de negação, Kripke formalizou dois outros operadores: o de necessidade e de possibilidade. Estes dois operadores são reescritos como operadores de quantificação e de existência, só que aplicados ao contexto mais geral de mundos possíveis. Isso dá fundamento lógico, por exemplo, aos contrafactuais. Para a lógica modal, recomendo o livro de Fitting e Mendelsohn, First-Order Logics, Kluwer Academic Publishers, 1998. Dependendo do uso que se faz desses operadores modais, surgem os diversos tipos de lógica modal: epistêmica, deôntica, temporal, doxástica etc.
Para Kripke, existem verdades que são necessárias e a posteriori. Existem também verdades contingentes a priori. Por exemplo, “Eu existo”. Como Descartes, eu obtenho essa verdade apenas pela razão, mas eu poderia não existir. Um mundo onde eu não existisse é um mundo possível. Para lidar com o problema da identidade nos diversos mundos possíveis, Kripke refinou o conceito de referência: ele considerou o que se entende hoje por designador rígido, um termo que designa a mesma coisa em todos os mundos em que tal coisa existe. Nomes, por exemplo, são designadores rígidos. Para saber mais sobre isso, recomendo Roger Scruton, Modern Philosophy, 1994.
É a lógica modal epistêmica que dá sustentação à Teoria dos Jogos. Em particular, está presente quando dizemos que as regras do jogo, as estratégias (ou as distribuições de probabilidade sobre as estratégias, como nos jogos bayesianos) e os perfis de payoffs são conhecimento comum (common knowledge). Um evento E é conhecimento comum em um mundo possível w se, e somente se, o menor evento M contendo w que é simultaneamente auto-evidente para todos os agentes está contido em E. Em outras palavras, é auto-evidente para todos os agentes que o mundo possível w é conhecido de todos. Eventos auto-evidentes são pontos fixos do operador de conhecimento, que é a roupagem funcional do operador lógico de necessidade de Kripke. Robert Aumann ganhou o Nobel em 2005 justamente nessa área, graças ao seu paper “Agreeing to disagree” (The Annals of Statistics), de 1976. A linguagem formal que ele usa é kripkeana. Geanakoplos tem um survey sobre lógica modal epistêmica e teoria dos jogos no Handbook of Game Theory, onde você pode se aprofundar mais: “Common Knowledge,” chapter 40 in volume 2 of Handbook of Game Theory, edited by Robert Aumann and Sergiu Hart, 1994.
Quando Hans-Hermann Hoppe (Economic Science and the Austrian Method, 1995) argumenta em favor de proposições sintéticas a priori na Economia, ele o faz valendo-se de um antigo modo de demonstração: o de que a própria negação já comprova a afirmação. Por exemplo, “o homem age”. Hans-Hermann Hoppe diz que essa proposição é sintética a priori porque, ao tentarmos negá-la, agimos e, portanto, a comprovamos. Observe que o argumento de Hans-Hermann Hoppe mostra corretamente que a proposição “o homem age” é uma proposição necessária. Baseado em Kant, para quem pri=nec (já que A=B), deduz-se claramente que é também a priori. Ela será sintética na medida em que admitirmos que o agir não se predica do conceito de homem. Por exemplo, se o conceito de homem for, nos moldes tradicionais da ontologia, “animal racional”. Porém, se considerarmos as contribuições de Kripke, concluímos que não necessariamente as proposições que Hans-Hermann Hoppe diz serem sintéticas a priori são, de fato, sintéticas a priori: elas são sintéticas necessárias. Para mostrar que são a priori, é preciso avançar muito mais na argumentação. Pode ser que isso não mude nada, mas pode ser que mude. O ponto é que isso reabre uma ferida que, para os austríacos da ala de Hans-Hermann Hoppe e Mises, já se considerava fechada e cicatrizada.
Mark Blaug, estranhamente, em Economic Theory in Retrospect, diz que as proposições se dividem apenas em analíticas e sintéticas. Pra mim, ele esconde um propósito nessa omissão, mas fico por aqui.