KRIPKE e KANT

Rodrigo Peñaloza
4 min readOct 2, 2019

(Rodrigo Peñaloza, 28-VII-2019)

Quero falar de uma coisa fascinante, ou melhor, uma pessoa, mas para chegar a ela com um mínimo de compreensão, de modo a tornar claro o motivo do fascínio, vou falar primeiro de outra coisa. Essa outra coisa é que a Filosofia tinha um problema. Muitos pensavam que a distinção entre [A: a priori e a posteriori] coincidia com a distinção entre [B: necessário e contingente] e com a distinção [C: analítico e sintético]. Assim, A=B=C.

Uma proposição a priori é aquela cuja verdade pode ser provada somente pela razão, sem necessidade da experiência; uma proposição a posteriori é aquela cuja verdade só pode ser estabelecida pela experiência. Uma proposição necessária é aquela cuja negação é impossível; a contingente é aquela cuja negação é possível. Uma proposição analítica é aquela cuja verdade decorre apenas dos conceitos envolvidos na proposição, ou seja, quando o conceito do predicado está incluído no sujeito; o que não for analítico, é sintético.

Kant (século 18) concordava com a equivalência A=B, mas discordava de A=C e, por conseguinte, de B=C. Havia, portanto, duas distinções a serem feitas. Para ele, algumas proposições a priori eram sintéticas (não analíticas). São aquelas proposições cuja verdade é obtida pela razão, mas cujo conceito do predicado não está incluído no sujeito, configurando-se, assim, um conhecimento não-trivial, ou seja, não-analítico. Eu costumo dizer para os meus alunos que uma demonstração é trivial quando ela apenas decorre das definições e axiomas iniciais, de forma que uma demonstração de 3 páginas pode ser mais trivial que uma de 3 linhas.

O que perturba muitos filósofos até hoje é saber se existem outras proposições sintéticas a priori que não sejam as da Matemática e da Lógica. Em Economia, por exemplo, a ala austríaca de Hermann Hoppe defende que existem proposições sintéticas a priori na economia. No outro extremo, há os que defendem que não, que tudo é empírico. Quine, um expoente do empiricismo, rejeita tudo que é necessário, analítico ou a priori. Para ele, a única coisa que podemos fazer é balançar entre sentenças fracamente comprovadas pela experiência e aquelas que podem ser descartadas sem medo. Seríamos, assim prisioneiros de nossa linguagem numa prisão de nominalismo e pragmatismo e cientificismo barato.

Saul Kripke (século 20) foi além. Segundo Kripke, havia três distinções a serem feitas, não duas! Para ele, a distinção A (a priori x a posteriori) é epistemológica (entre duas rotas para o conhecimento), a distinção B (necessário x contingente) é metafísica (entre dois modos de ser) e a distinção C (analítico x sintético) é semântica (entre duas maneiras pelas quais se estabelece o valor-verdade da proposição). Para tanto, Kripke se valeu do fato de que essas distinções têm como pano de fundo o problema da identidade e da referência. A que objeto se refere a proposição? A resposta a essa pergunta é o que conecta a nossa linguagem com a coisa real, aquilo a que se refere. Isso já era ponto antigo. Russel já falava disso e os escolásticos também. Mas a identidade da coisa referida deve permanecer a mesma também em outros mundos possíveis, sem o que a verdade não será necessária. Mundos possíveis são uma maneira elegante que os filósofos têm de considerar que as coisas poderiam ser diferentes.

O que Kripke fez foi construir, a partir da ideia de mundos possíveis — revivida por Lewis no século 20 (a partir de Leibniz, embora Aristóteles tenha tocado nesses “modos” lógicos do ser e Ockham tenha avançado bastante sobre isso na Idade Média), aquilo que hoje se conhece por Lógica Modal. Além dos operadores usuais de quantificação e de existência e de negação, Kripke formalizou dois outros operadores: o de necessidade e de possibilidade. Estes dois operadores são reescritos como operadores de quantificação e de existência, só que aplicados ao contexto mais geral de mundos possíveis. Isso dá fundamento lógico, por exemplo, aos contrafactuais. Pra quem não sabe, é também o que dá sustentação epistêmica à Teoria dos Jogos. Em particular, quando dizemos que as regras do jogo, as estratégias (ou as distribuições de probabilidade sobre as estratégias, como nos jogos bayesianos) e os perfis de payoffs são conhecimento comum (common knowledge). Robert Aumann ganhou o Nobel em 2005 justamente nessa área, graças ao seu paper “Agreeing to disagree” (The Annals of Statistics), de 1976.

Para Kripke, existem verdades que são necessárias e a posteriori. Existem também verdades contingentes a priori. Por exemplo, “Eu existo”. Como Descartes, eu obtenho essa verdade apenas pela razão, mas eu poderia não existir. Um mundo onde eu não existisse é um mundo possível. Para lidar com o problema da identidade nos diversos mundos possíveis, Kripke refinou o conceito de referência: ele definiu o que se entende hoje por designador rígido.

As ideias de Kripke mudaram totalmente os rumos da Filosofia moderna há pouco mais de meio século. Questões fundamentais da Metafísica, da Lógica e da Epistemologia não podem ser feitas hoje sem o arcabouço formalizado por Kripke. Uma excelente referência para o estado atual da Filosofia sobre esses problemas é “Modern Philosophy”, de Roger Scruton, que muito me ajudou a sintetizar essas ideias, antes um tanto dispersas. Eu também recomendo “Metaphysics”, de Michael Loux, e “Modal Logics and Philosophy”, de Rod Girle. A coletânea de palestras de Kripke, “Naming and Necessity”, de 1980, é fundamental.

Mas o que eu queria dizer — e esta é a intenção primária deste meu texto -, é que Saul Kripke fez isso tudo que eu descrevi acima quando ainda tinha somente 13 anos de idade, um garotinho estudante de uma high school em Nebraska e cujas reflexões culminaram num artigo intitulado “A completeness theorem for modal logic”, publicado no Journal of Symbolic Logic, em 1959, aos 19 anos, quando recém ingressara na universidade. O que faz um garoto de 13 anos devotar sua mente a problemas tão profundos da Filosofia, da Metafísica, da Lógica e da Epistemologia? Se ele resolveu essas questões aos 13 anos, é porque já conhecia os problemas anteriormente.

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Rodrigo Peñaloza
Rodrigo Peñaloza

Written by Rodrigo Peñaloza

PhD in Economics from UCLA, MSc in Mathematics from IMPA, Professor of Economics at the University of Brasilia.

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