Microeconomia em doses: a falácia da utilidade causal
A ideia de utilidade como expressão de grau de felicidade é de Jeremy Bentham. Essa ideia já foi ultrapassada há muito tempo, mas suas consequências ainda iludem não só estudantes, como também muitos economistas, além de munir de ignorância grande parte dos críticos.
Ken Binmore (Rational Decisions, Princeton University Press, 2009, pp. 19–22) denomina essa concepção de falácia da utilidade causal, o termo “causal” aqui designando a ideia de que é a utilidade que explica a ação, não o contrário. O erro é propagado pelos próprios economistas neoclássicos nos livros-textos, quando dão a entender que “o indivíduo escolhe A em vez de B porque ele prefere A a B”, mas não explicam o que isso realmente significa. Se você pensar bem, verá que essa concepção contraria a teoria da preferência revelada, segundo a qual é a observação empírica da escolha de A, em vez de B, que revela que o indivíduo prefere A a B, não o contrário. Para resumir o que disse até aqui, temos duas concepções distintas:
(a) teoria benthamista (concepção antiga) o indivíduo escolhe A em detrimento de B porque ele prefere A a B;
(b) teoria da preferência revelada (concepção moderna): é porque o indivíduo escolhe A em detrimento de B, que podemos dizer que ele prefere A a B.
É claro que a definição moderna de utilidade é dada em termos de equivalência: “a alternativa A é preferida a B se, e somente se, a utilidade de A é maior que a utilidade de B”. Note, porém, que essa definição nada diz quanto à ação tomada: ela apenas conecta uma estrutura de preferências com uma representação numérica. Tudo permanece, portanto, no mundo das preferências, não da ação.
A concepção que a Teoria Econômica adota hoje é a da preferência revelada. Como diz Binmore, “O fato de que a utilidade costumava significar uma coisa e hoje significa outra, compreensivelmente é causa de muita confusão” (op. cit., p. 19). A concepção moderna liberta a teoria da preferência revelada de quaisquer pretensões psicológicas.
Para entendermos a moderna Teoria Econômica, devemos voltar a Lionel Robbins e a um termo que ele utilizou: consistência. Consistência nada mais é que transitividade. Ele chama de consistência porque é essa propriedade o que nos garante observar consistência nas escolhas dos indivíduos.
A melhor explicação para isso é evolucionária e quem a fornece é Armen Alchian. A natureza tende a eliminar os indivíduos que expressam intransitividades, não importa se consciente ou inconscientemente. Quando falamos de racionalidade em termos evolucionários, é preciso distinguir entre causas próximas e causas últimas. Isso é mais ou menos o que eu expliquei em outro texto sobre preferências instrumentais e intrínsecas. Por que os pássaros cantam na primavera? A causa próxima é que as cordas vocais emitem sons, motivadas por reações químicas e neuronais. A causa última é que assim eles sinalizam seu território e evitam conflitos desnecessários, além de sinalizar a disposição para reproduzir, garantindo a preservação da espécie. Os pássaros não sabem e nem se preocupam se esse comportamento é racional ou não, mas esse comportamento é racional, no sentido de ser o melhor comportamento para a sobrevivência. Se os pássaros fossem conscientemente racionais, tomariam essa decisão. Eles não são, mas os que sobreviveram aos tempos são justamente aqueles cujos comportamentos consistentemente se alinharam à causa última. De modo similar, Alchian argumenta que as forças econômicas tenderão a eliminar do mercado os investidores que consistentemente não procuram maximizar os lucros.
Observe que a teoria econômica não nega que eventualmente alguns indivíduos expressem intransitividades (ou inconsistência ou irracionalidade), como os críticos em geral gostam de alardear. O que os críticos não levam em conta é o aspecto evolucionário. A realização de intransitividades causa perdas no ambiente que prejudicam o indivíduo e o eliminam. É justamente esse aspecto que os críticos ignoram. Escrevi sobre isso no blog em um texto intitulado Irrationality cannot persist forever, mas reproduzirei sucintamente o argumento. Binmore também o faz no livro que citei (vide op. cit., pp. 13–14). Suponha que um indivíduo X tem preferências cíclicas, A>B>C>A, e tem recursos de $10. Um negociante Y lhe oferece A em troca de B e mais $1, o que X aceita. Estamos aqui supondo que a unidade monetária é apropriada para que a troca acompanhada da cessão de $1 seja compatível com as preferências de X. O negociante Y então oferece C em troca de A e mais $1, o que X mais uma vez aceita. Depois Y lhe oferece B em troca de C e mais $1. Findo esse ciclo, X volta à situação inicial, só que $3 mais pobre. Y então repete o processo até que X fique sem recursos e seja eliminado.
A teoria da preferência revelada é uma filha da teoria neoclássica e, como tal, é a doutrina oficial da economia neoclássica, patente em todos os livros-textos (Binmore, p. cit., p. 20). Neste ponto, passo a palavra ao próprio Binmore:
“O tipo de crítico que pensa que os economistas são sacanas, pessoas desajustadas que só pensam em dinheiro, geralmente ignoram o pensamento oficial em favor de um espantalho que é fácil de nocautear. Dizem que a economia neoclássica é baseada no princípio de que as pessoas são egoístas. (…) Não é verdade que o egoísmo é um axioma da teoria econômica. Eu suspeito que esse erro tão generalizado exista porque as pessoas pensam que os agentes racionais devem agir por auto-interesse porque eles maximizam sua própria função de utilidade, em vez de alguma outra função-objetivo social. Mas dizer tais coisas é mostrar que não entendeu nada da teoria da preferência revelada”. Binmore, op. cit., pp. 20–21.
O argumento evolucionário de Alchian significa que as pessoas agem como se maximizassem a utilidade, não que elas efetivamente maximizam. Elas nem pensam nisso, mas seu comportamento, se consistente, não será desconforme com isso.
Demos acima a definição de utilidade, aquela que todos conhecemos dos livros-textos, expressa em termos de uma equivalência entre ordenação no âmbito das preferências e uma correspondente ordenação no âmbito das utilidades numéricas. Nesse sentido, a utilidade de fato é uma construção baseada nas preferências, mas devemos entender que as preferências não são o elemento primitivo da teoria da preferência revelada. Os elementos primitivos são as escolhas observadas!
Há uma anedota clássica contada por David Friedman (no livro Hidden Order, creio que nos primeiros capítulos):
Você e sua família juntaram dinheiro por dois anos, compraram um pacote turístico e foram passar o final de ano em Paris. Passeando pelas ruas, veem passar uma Lamborghini Veneno, de 4,2 milhões de euros. Seu cunhado diz: “Eu queria muito ter esse carro!” Você, como economista, responde: “Certamente que não.” Por quê?
A resposta é que, se o cunhado não agiu para adquirir o carro, é porque ele preferiu seu status quo ao carro. Então ele revelou que não quer muito o carro, pois ele prefere muito mais o seu status quo. É a ação que revela a preferência, não o contrário. Eis a lição. Quando conto a anedota, algumas pessoas, não conseguindo argumentar corretamente em termos econômicos, dizem que o conjunto orçamentário não permitiria a compra. Ora, essas pessoas simplesmente fundam seu raciocínio econômico no modelo de maximização da utilidade sobre o conjunto orçamentário, ou seja, não enxergam a teoria econômica além do modelo simplório. No modelo de livro-texto, a decisão de consumo se dá num âmbito institucional de preços de mercado e trocas de direitos de propriedade garantidos. Porém, nada na teoria impede que o indivíduo faça trocas ilegalmente para adquirir o carro. O objetivo do modelo de livro-texto é fornecer um modus ratiocinandi, um modo de conectar conceitos para explicar fenômenos, e não simplesmente achar que a teoria é igual ao modelo.
Para concluir, deixo aqui uma confissão do próprio Binmore: “No passado, eu segui alguns filósofos dizendo que as pessoas agem em seu próprio auto-interesse iluminado quando elas agem consistentemente, mas hoje eu vejo que isso era um erro. É melhor evitar qualquer tipo de linguagem que admita a falácia da utilidade causal como uma possibilidade”. (op. cit., p. 21)