Por um retorno a Aristóteles

Rodrigo Peñaloza
3 min readNov 27, 2023

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Pintura: "Aristóteles", por Francesco Ayez (1791-1882).

Aristóteles mostrou cabalmente que o ente não é gênero, que não é o gênero supremo. De fato, para passarmos do gênero a uma espécie, é preciso estabelecer uma determinação que ele não contém, à qual damos o nome de diferença específica. Assim, do gênero “animal” passamos à espécie “homem” mediante a diferença específica “racional”, de modo que a essência do homem é “animal racional” (na verdade, o gênero supremo é a “substância” e a essência do homem é “substância vivente animal racional”). O ente não é gênero porque toda diferença específica que se lhe possa acrescentar já faz parte dele.

Mesmo assim, muitos pensadores insistiram no erro de que o ente é gênero supremo (alguns até traduzem erroneamente por “ser”) e este erro é característico das filosofias que tratam as realidades metafísicas como meros conceitos lógicos. Duas figuras cruciais no processo de deriva da metafísica e que culminou no seu descrédito moderno são Duns Scotus e Francisco Suárez. Para eles, primeiro conhecemos os entes singulares pela inteligência; depois alcançamos sua essência e, por fim, chegaríamos a um gênero supremo separado da experiência, a saber, o ente.

Essa ideia de ente como o gênero generalíssimo (acima do qual não há mais gênero), não como o ente real, foi precisamente a ideia que o racionalismo moderno herdou. Foi dessa visão deturpada da metafísica aristotélico-tomista que derivou o preconceito sobre a metafísica, atribuindo a ela um falso desinteresse pela realidade. Quem, hoje, alguma vez não usou o termo “metafísico” para designar qualquer coisa irreal e fantasiosa? Pois bem, a metafísica é tudo menos isso. Daí a importância de conhecer Aristóteles e a síntese aristotélico-platônica de Tomás de Aquino para bem compreendermos o pensamento ocidental. Para Scotus e Suárez, então, o ente é um conceito indeterminado e se reduz a uma essência possível. Criaram, assim, o mundo das essências abstratas separado do mundo das existências fáticas.

Duas consequências graves resultam desse erro. Primeiro, a inteligência se separa dos sentidos, significando que a essência é objeto da razão pura, enquanto que a existência fática é captada pelos sentidos. Disso nasceu a oposição entre racionalismo e empirismo. Vemos isso no debate moderno sobre a religião, no qual as coisas do espírito são vistas como separadas de qualquer possibilidade de conhecimento fático. Isso leva muitos a considerarem a religião como ignominiosa fantasia, alheios que são a qualquer capacidade de transcendência da interpretação literal e de um entendimento racional de que o texto religioso é simbólico. Vemos isso também no debate científico, em que somente as proposições testáveis empiricamente têm status de potencial realidade (essência possível), ao passo que proposições alcançadas pela razão não têm. Em Economia isso se verifica no embate entre a metodologia vigente e, por exemplo, a metodologia apriorística da Escola Austríaca. A ironia dessa triste geléia informe dos pensadores modernos é que essa separação é fruto de uma falha de raciocínio, lá atrás, quando, não compreendendo a grandeza de Aristóteles e Tomás de Aquino, alguns pensadores cometeram erros contra os quais o próprio Aristóteles já nos havia alertado.

No famoso paradoxo da Teoria dos Conjuntos, de Bertrand Russel e Alfred North-Whitehead, sobre o conjunto X de todos os conjuntos que não estão contidos em X, temos o reflexo moderno de Aristóteles. Russel e Whitehead resolveram o paradoxo introduzindo o conceito de classe, que é caracterizado por uma propriedade específica a que todos os seus elementos devem satisfazer. Sem isso, a pergunta se o conjunto de todos os conjuntos é um conjunto contido nele mesmo é sem sentido. Ora, que é isso senão a diferença específica que especifica a espécie de um gênero e graças à qual se conclui que o ente não é um gênero supremo? A solução matemática é a mesma solução metafísica.

Se os empiricistas modernos, os da Economia, por exemplo, entendessem realmente que aquilo que eles conhecem por metafísica não é a Metafísica propriamente dita (aristotélico-tomista), veriam quão fanática é sua posição contra o apriorismo da Escola Austríaca e veriam que todo debate científico é, em particular, um debate metafísico.

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Rodrigo Peñaloza
Rodrigo Peñaloza

Written by Rodrigo Peñaloza

PhD in Economics from UCLA, MSc in Mathematics from IMPA, Professor of Economics at the University of Brasilia.

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