Quando a Rússia olhou a Europa
Pedro, o Grande, europeizou a Rússia. Durante todo o século XVIII, nobres russos viajavam à Europa para aprender seus modos, sua cultura. Em solo pátrio, uma contradição ganhava fôlego: ao mesmo tempo em que a Europa se tornava o ideal de civilização para o nobre russo, a cultura russa, de origem camponesa e fortemente marcada pela religião ortodoxa, sofria com o desprezo desse nobre, misto de complexo de inferioridade e sincero desejo de aprendizado.
Nos vários relatos de viagem que sobreviveram a esse período, é comovente a percepção do viajante de como o europeu encarava o russo. Enquanto o russo idealizava a Europa, o europeu o enxergava como um bárbaro, surpreendendo-se, inclusive, de que um viajante russo falasse outros idiomas e não raro o russo sofria o deboche sobre a inexistência de uma literatura russa.
Essa inexistência, ou melhor, inexpressividade, era fato. De centenas de obras publicadas naquele século na Rússia, apenas um punhado, menos de uma dezena, era de russos. Talvez isso lhe doesse mais no coração do russo do que a alcunha de bárbaro inculto.
O que me surpreende é que, dessa humilhação sofrida em razão da necessidade de absorção dos reais avanços civilizatórios da Europa - os quais, ainda que pela mão forte de Pedro, o Grande, a Rússia teve que aceitar para a forja de seu grande destino -, a Rússia alçou, com a rapidez de um relâmpago, suas letras aos píncaros estabelecidos por Homero, Vergilius e Dante. Hoje, ao lado desses autores clássicos que moldaram a Civilização Ocidental, brilham Dostoievski, Tolstoi, Pushkin e tantos outros. Isso só é possível se algo de muito raro existir na alma do povo. O que é, não sei, mas a língua russa é o caminho para essa fonte.
Karamzin foi um desses intelectuais viajantes e, ciente que era da contradição que pairava sobre o sentimento de identidade do russo, tendo ouvido dos europeus que os russos, por os imitarem, eram macacos imitadores dos europeus, reagiu, conclamando, no alvorecer do século XIX, seus compatriotas a abraçarem a Língua Russa. É do livro História Cultural da Rússia, I.7, p. 108, de Orlando Figes (original: Natasha’s Dance: a Cultural History of Russia), que retiro este excerto de Karamzin:
A nossa língua é capaz não só de elevada eloquência, de sonora poesia descritiva, como também de terna simplicidade, de sons de sentimento e sensibilidade. É mais rica em harmonias do que o Francês; presta-se melhor às efusões da alma (...). Homem e Nação podem começar com imitação, mas com o tempo precisam tornar-se quem são para ter o direito de dizer: Eu existo moralmente!