Que função utilidade?

Rodrigo Peñaloza
5 min readFeb 23, 2024

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Armen Alchian e William Allen, na seção de exercícios do capítulo 2 de seu livro University Economics, cuja primeira edição é de 1964, propõem a seguinte questão:

"Ao utilizar o princípio da maximização da utilidade, a Teoria Econômica supõe que o homem está maximizando alguma entidade psicológica? Explique porque a resposta é: Não".

No capítulo 3 (edição de 1972), Alchian e Allen escrevem:

"O conjunto precedente de postulados é muitas vezes chamado de teoria de maximização da utilidade da natureza humana. Isso poderia levar a crer que existe uma coisa chamada utilidade, a qual as pessoas tentam maximizar. O nome teve origem nos inícios da história da análise econômica. Naquela época era popular pensar que os bens proporcionavam alguma utilidade em algum sentido psicologicamente mensurável. Embora essa concepção psicológica equivocada tenha sido abandonada, o nome utilidade ficou. Hoje ela é simplesmente um indicador para ordenar opções de acordo com as preferências".

A Teoria Econômica, quando usa o modelo de maximização da utilidade, não pressupõe que os agentes econômicos, como o seu José da padaria, maximizam, como computadores ambulantes, uma utilidade ou mesmo que tenham uma função utilidade na cabeça. Entretanto, o modelo de maximização da utilidade é útil, porque as pessoas, em geral, agem como se maximizassem uma utilidade. O sentido dessa expressão é que, no processo decisório, as pessoas comparam taxas marginais de troca com preços relativos. A taxa marginal de troca de um bem Y por X é o quantum de Y que o agente está disposto a sacrificar, na unidade de tempo e de modo a ficar indiferente, em troca de uma unidade adicional de X. Ela reflete, portanto, uma indiferença entre dois padrões de consumo alternativos. Esse conceito é independente da ideia de razão entre as utilidades marginais dos bens X e Y que encontramos no modelo de naximização da utilidade em qualquer livro-texto de Economia. Com efeito, é uma razão entre quantidades, não de entes de razão como a utilidade marginal. O que permite o uso do modelo como um instrumento de análise equivalente ao processo decisório real é a noção de indiferença, pois, com ela, a equivalência surge mediante uma simples aplicação do Teorema da Função Implícita. Para entender isso com mais detalhes, recomendo um artigo meu:

Peñaloza, R. (2018): “Some thoughts on homo oeconomicus”, in Teixeira, Joanílio et alii (org.), Essays on Political Economy and Society, 2018. (Clique aqui para a versão WP: https://www.researchgate.net/publication/327163176_SOME_THOUGHTS_ON_HOMO_OECONOMICUS?fbclid=IwAR2lu-Z96RTN_7EXcf3V03iHqWXAj6wFU1D94ik3dIuvQdvq9y97rV3yrn0 )

Quanto à racionalidade, é preciso entender que ela nada mais é que o conceito de transitividade das preferências, o que Lionel Robbibs chamava de consistência. O problema é que, se você compreender por transitividade a mera definição matemática, você estará mostrando que não entendeu o significado econômico. Transitividade, do ponto de vista econômico, descreve a ideia de que os agentes, ao tomarem uma decisão diante de várias alternativas, têm alguma noção da melhor alternativa sacrificada. É simples assim.

Nada na Teoria Econômica afirma que os indivíduos são racionais o tempo todo em todas as instâncias. Porém, o que ela afirma há muito tempo é que a racionalidade é o resultado de um processo evolucionário de seleção: a natureza e o mercado eliminam aqueles que consistentemente expressam intransitividades sem rever suas preferências com os erros. Para entender esse ponto, você deve ler aquele que é tido como um dos artigos econômicos mais importantes do século XX:

Alchian, A. (1950): “Uncertainty, evolution and economic theory”, Journal of Political Economy, 58: 211-221.

Segundo Kenneth Arrow, esse é o artigo que motivou o nascimento da teoria dos jogos evolucionários em Economia. Clique aqui para o artigo: https://www.academia.edu/resource/work/36910173

Um dos aspectos da racionalidade é a revisão de erros de racionalidade. Para isso, é importante compreender que erros sistemáticos de racionalidade causam modificações no ambiente do indivíduo, as quais o prejudicam, caso contrário não seriam erros. Esse aspecto da modificação do ambiente é algo que muitas pessoas, no afã de transformar a Economia Comportamental em munição para atacar o mainstream e a Teoria Ortodoxa (como se aquela fosse a “superação” epistemológica desta), simplesmente desconsideram, seja por ignorância, seja por má-fé. O argumento evolucionário original deve-se a Armen Alchian e a Teoria reconhece essa paternidade abertamente. Autores como Ken Binmore, Bob Aumann, Itzack Gilboa, David Schmeidler desde então aprofundam teoricamente esse argumento. O Center for the Study of Rationality (Hebrew University of Jerusalem), do qual Bob Aumann é membro, e a Tel-Aviv University têm uma forte linha de pesquisa na área. Ken Binmore, em Rational Decisions, cap.1, conta uma anedota entre Leonard Savage e Maurice Allais, na qual Allais tenta derrubar a teoria da utilidade esperada de Savage perguntando a ele algo para o qual Savage dará a resposta errada, de onde Allais, tal como muitos que maliciosamente usam e abusam da economia comportamental para “atacar” o espantalho que eles próprios criam da Teoria Ortodoxa, tirará munição para criticar a racionalidade. A simplicidade da réplica de Savage às pretensões de Allais só não é maior que a imensa ironia nela embutida: “Agora eu sei que errei...” Ken Binmore escreve:

Pandora uses the theory of revealed preference normatively when she revises her attitudes to the world after discovering that her current attitudes would lead her to make choices in some situations that are inconsistent with the choices she would make in other situations. A famous example arose when Leonard Savage was entertained to dinner by the French economist Maurice Allais. Allais asked Savage how he would choose in some difficult-to-assess situations (section 3.5). When Savage gave inconsistent answers, Allais triumphantly declared that even Savage didn’t believe his own theory. Savage’s response was to say that he had made a mistake. Now that he understood that his initial snap responses to Allais’ questions had proved to generate inconsistencies, he would revise his planned choices until they became consistent. One doesn’t need to dine with Nobel laureates in Paris to encounter situations in which people use their rationality in revising snap judgments. I sometimes ask finance experts whether they prefer 96 × 69 dollars to 87×78 dollars. If given no time to think, most say the former. But when it is pointed out that 96 × 69 = 6, 624 and 87 × 78 = 6, 786, they always change their minds. An anecdote from Amos Tversky (2003) makes a similar point. In a laboratory experiment, many of his subjects made intransitive choices. When this was pointed out, a common response was to claim that his records were mistaken—the implication being that they wouldn’t have made intransitive choices if they had realized they were doing so. (...) In brief, rational decision theory is only a useful positive tool when the conditions are favorable. Economists sometimes manage to convince themselves that the theory always applies to everything, but such enthusiasm succeeds only in providing ammunition for skeptics looking for an excuse to junk the theory altogether.

Ao exporem o que entendem por ortodoxia neoclássica, Belluzzo e Pedro Paulo Bastos, em artigo da Folha de 23/06/2016, intitulado Crises econômicas evidenciam o reducionismo de modelos teóricos, dizem:

"O principal elemento definidor da ortodoxia neoclássica é o axioma de indivíduos racionais e maximizadores de utilidade (...)".

Você, estudante de Economia, se realmente aprendeu alguma coisa, já é capaz de tirar suas próprias conclusões.

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Rodrigo Peñaloza

PhD in Economics from UCLA, MSc in Mathematics from IMPA, Professor of Economics at the University of Brasilia.