Rodrigo Peñaloza
4 min readJan 1, 2020

SEBASTIANISMOS
(Rodrigo Peñaloza, 01-I-2020)

Por ter conduzido Roma ao maior período de paz jamais conhecido na história, a pax romana, Otávio foi chamado Caesar Augustus, isto é, o césar venerável. Augustus em Latim tem a mesma raiz da palavra avis, que significa “ave”, mas também “presságio”. Obviamente há uma origem proto-indo-europeia, pois o termo é correlato do verbo grego ἄω (áō), que significa “soprar, agitar o ar”, justamente o que faz o voo do pássaro. Não por outra razão os romanos tinham os áugures, aqueles que interpretavam o voo das aves, pela forma como esse voo agitava o ar, cortava o ar, porquanto assim procedendo poderiam interpretar os desígnios divinos. O termo, portanto, é repleto de significado divino, em especial no que concerne à adoração e à veneração ritualísticas.

O epíteto augusto imediatamente recebeu seu equivalente grego, σεβαστός (sebastós), derivado do substantivo σέβας (sébas), “veneração”, sem a mediação do verbo ἄω, mas ainda assim mantendo o significado que os romanos lhe atribuíam. Essa é a origem grega do nome Sebastião.

Por falar em Sebastião, vem-nos à mente o rei português D. Sebastião, que desapareceu na Batalha de Alcácer-Quibir, em 1578. Como seu corpo nunca foi encontrado, nasceu a lenda de que ele voltaria. É claro que ele nunca retornou, mas não faltaram os falsos sebastiões, impostores que alegavam ser o rei D. Sebastião que retornara. No Brasil, Antônio Conselheiro se valeu do sebastianismo na guerra de Canudos para dizer que D. Sebastião retornaria para restaurar a monarquia.

Voltando a Roma, por lá também existiu o sebastianismo, mas não com esse nome. Por incrível que pareça, o D. Sebastião da vez foi ninguém menos nem mais que o Imperador Nero. Sua morte ocorreu aos 31 anos e seu funeral teve pouquíssimas pessoas, tamanho o desprezo que lhe devotavam os mais próximos. Matou a mãe, matou a esposa grávida, matou o tutor Sêneca, dando-lhe ordem para que se suicidasse e, finalmente, ele mesmo, encurralado pela guarda pretoriana, se matou. Mesmo assim, no Oriente, longe da Urbs, Nero era bem quisto. Reza a lenda que, tendo tido boas relações com o reino da Pártia, atual nordeste do Irã, Nero não teria se suicidado, mas sim fugido para a Pártia, de onde retornaria com um exército para retomar o poder.

A história é cheia de repetições, muitas das quais certamente arquetípicas, no sentido de que eventos aparentemente aleatórios sejam, possivelmente, reflexos fenomênicos da psiquê coletiva. Eis que também apareceram os falsos Neros. Quem nos narra do primeiro falso Nero, que teria aparecido em 69 AD, é Tácito, em Historiae, II.8.1:

“Na mesma época, a Acaia e a Ásia infundadamente foram tomadas de pavor pela suposição de que Nero se aproximava, pois vários eram os boatos sobre o seu fim e muitos lá havia que imaginavam e acreditavam que ele ainda estava vivo. Tratarei dos outros casos ao longo da obra, o de agora é um escravo do Ponto ou, como outros relataram, um liberto da Itália, perito em canto e cítara (…)”. [Sub idem tempus Achaia atque Asia falso exterritae velut Nero adventaret, vario super exitu eius rumore eoque pluribus vivere eum fingentibus credentibusque. Ceterorum casus conatusque in contextu operis dicemus: tunc servus e Ponto sive (…)].

Suetônio, que escreveu sobre os césares, conta-nos em Nero, 57.1–2, que muitos cidadãos por muito tempo ainda fixavam tabuletas com éditos de Nero como se ele ainda estivesse vivo:

“Entretanto, não faltaram aqueles que por longo tempo ornassem seu túmulo com flores primaveris e estivas e levassem às tribunas umas vezes estátuas de Nero vestido de toga púrpura, outras vezes éditos, como se ele estivesse vivo e em breve fosse retornar, para grande dano dos inimigos (…). Enfim, depois de 20 anos, eu adolescente, apareceu um zé-ninguém jactando-se de ser Nero e tão bem-quisto era seu nome entre os partos, que só a muito custo foi mandado de volta”. [Et tamen non defuerunt qui per longum tempus vernis aestiuisque floribus tumulum eius ornarent ac modo imagines praetextatas in rostris proferrent, modo edicta quasi viventis et brevi magno inimicorum malo reversuri. (…) Denique cum post viginti annos adulescente me extitisset condicionis incertae qui se Neronem esse iactaret, tam favorabile nomen eius apud Parthos fuit, ut vehementer adiutus et vix redditus sit].

Como vemos, o sebastianismo é um tema recorrente na história psíquica dos povos. Tão enigmático é o tema que o próprio termo sebastianismo, que deriva do rei D. Sebastião, é um termo intimamente ligado ao termo grego σεβαστός utilizado para traduzir o epíteto augustus de Otávio, significando “o venerável”, aquele passível de veneração e adoração.

Por que é que as pessoas adoram reis desaparecidos e neles depositam suas esperanças de restituição de um governo perdido? Seja como for, em todos os casos o sebastianismo se alimenta da cegueira, da negação do óbvio. Teríamos nós, os brasileiros, o nosso D. Sebastião em Lula? Ou será ele o nosso Nero? Minha resposta é: nenhum dos dois. D. Sebastião morreu jovem demais para ser augusto. Nero foi césar, mas não augusto. Augusto foi Otávio, que deu ao mundo o modelo da pax romana, isso sim uma conquista merecedora da nossa veneração.

Rodrigo Peñaloza
Rodrigo Peñaloza

Written by Rodrigo Peñaloza

PhD in Economics from UCLA, MSc in Mathematics from IMPA, Professor of Economics at the University of Brasilia.

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