SHORTAGE e ESCASSEZ: O problema da má tradução
(Rodrigo Peñaloza, 11/9/2019)
Vejam os problemas que uma má tradução pode causar no entendimento de princípios elementares da Economia. Na tradução do livro de Microeconomia de Pindyck & Rubinfeld, cap. 2, p. 21, (6a ed., 2006), o termo original “shortage” foi traduzido por “escassez”. O gráfico a seguir é o que aparece na tradução:
Ora, “shortage” e “scarcity” são duas coisas totalmente diferentes. Escassez existirá sempre, desde que os preços sejam positivos, pois o preço relativo de X em relação ao de outro bem Y reflete o quanto de Y o consumidor está disposto a sacrificar para a obtenção da unidade adicional de X. Se ele está disposto a sacrificar, então ao escolher X ele incorre em custo, o que ocorre justamente porque o bem X é escasso relativamente a Y. No gráfico, o correto é dizer que existe escassez não só ao preço P2, como também ao preço Po e ao preço P1.
O termo “shortage” deveria ser traduzido como “excesso de quantidade demandada em relação à ofertada ao preço P2”. Observem que “shortage” depende do preço. Sempre que um dado preço estiver abaixo do de equilíbrio, haverá shortage ao dado preço. O preço de equilíbrio é aquele que iguala duas coisas: (1) o quanto o consumidor marginal está disposto a sacrificar de outros bens pela unidade adicional de X e (2) o quanto a sociedade — na forma dos detentores dos direitos de propriedade sobre os recursos ou fatores de produção — está disposta a sacrificar do uso alternativo de seus recursos para, em troca, deslocar esses recursos para a produção da unidade adicional do bem X. Pindyck e Rubinfeld, evidentemente, definem corretamente no livro deles o que é shortage.
Se o preço P2 é inferior ao de equilíbrio, Po, então o shortage significa que existem oportunidades inexploradas de ganhos de troca no seguinte sentido. Seja Xa a quantidade ofertada de X ao preço P2 e seja Xb a quantidade demandada de X ao preço P2. Então o montante do shortage é a diferença Xb-Xa. O que está acontecendo aqui? Quando os produtores, ao preço P2, ofertam a quantidade Xa, os demandantes estão dispostos a sacrificar o consumo de outros bens num valor maior que P2 (é só determinar o preço na curva de demanda correspondente à quantidade Xa). Então, na ausência de externalidades, existe um benefício marginal social positivo no deslocamento dos recursos para a produção da unidade seguinte, ou seja, o valor que a sociedade — na forma dos demandantes — atribui à unidade adicional de X é maior que o valor que a própria sociedade — na forma dos detentores dos fatores de produção — atribui ao melhor uso alternativo dos recursos que são deslocados para a produção da unidade adicional de X. O benefício marginal social líquido dessa transação adicional é mensurada pela diferença entre preço de demanda e preço de oferta à quantidade Xa, isto é, a distância vertical entre a curva de demanda e a de oferta à quantidade Xa. Uma vez explorada essa oportunidade de ganho, os demandantes já têm um pouco mais de X em troca de um pouco menos de outros bens que eles estiveram dispostos a sacrificar, de modo que, pelo princípio da valoração marginal decrescente, eles agora estão dispostos a pagar um preço menor pela segunda unidade adicional. Por outro lado, como os proprietários dos fatores já sacrificaram o melhor uso alternativo (na margem) para deslocar esses recursos para a produção daquela unidade adicional de X, eles agora exigirão um preço maior por seus recursos, caso os produtores desejem deslocá-los para a produção da segunda unidade adicional. Esse preço maior ocorre também em razão do princípio da valoração marginal decrescente, do ponto de vista dos proprietários dos fatores de produção. É por isso que a curva de custo marginal pode ser interpretada como o reflexo especular da curva de valoração marginal social sobre os recursos que são deslocados para a produção de X. Na linguagem de Pigou, o benefício marginal líquido privado é igual ao benefício marginal líquido social. Desse modo, se ainda persistirem oportunidades de ganho, estas serão menores e a cada passo irão se exaurir até que o mercado alcance a quantidade de equilíbrio, Qo, pois a esta última unidade, as valorações marginais se igualam: serão Po. O preço de equilíbrio, portanto, não é UM preço, mas sim DOIS: a valoração marginal do demandante e a valoração marginal social dos donos dos fatores de produção (que se materializa no custo marginal privado que o produtor enfrenta), só que esses dois preços são os mesmos em equilíbrio. Essas explorações marginais de ganho fazem com que a cada passo o preço suba de P2 até Po. Enquanto isso ocorre, a quantidade demandada vai se reduzindo ao longo da curva de demanda, reduzindo-se, consequentemente o montante de shortage: o ofertante avança para além de Xa e o demandante recua para aquém de Xb. Eles se encontrarão em Qo, quando todas as oportunidades de ganho tiverem sido exploradas.
O que subjaz a isso tudo é um fato que mesmo alguns economistas não entendem: por trás da demanda e da oferta existe um pano-de-fundo comum, que é o princípio da valoração marginal decrescente. Muita gente erroneamente acha que a demanda é essencialmente diferente da oferta, porque a demanda provém das preferências restritas ao conjunto orçamentário e a oferta provém da tecnologia restrita aos preços fatoriais e à quantidade dada (o isoquantum), dizendo, assim, que a oferta é meramente um fenômeno tecnológico, diferentemente da demanda. Isso é um erro! Todo valor marginal reside no indivíduo, seja ele consumidor ou produtor, e deriva dos sacrifícios inerentes à escolha, já que em tudo persiste a escassez. O que gera a aparente diferença é que, no lado da oferta, a valoração marginal, que tem origem nos donos dos fatores de produção, se materializa, para o produtor de X, na forma de preços fatoriais, ou seja, nos seus custos de oportunidade. Daí a ilusão de a oferta ser meramente um fenômeno tecnológico. Os livros-textos não ajudam muito, pois a oferta é apresentada como um problema de pesquisa operacional, não de economia: o problema de minimização de custos sobre uma tecnologia de produção. Ora, a economia da produção vai mais além que a tecnologia: ela se estende às valorações marginais dos proprietários dos fatores de produção, que, tal como qualquer agente econômico, estão dispostos a sacrificar parte de seus recursos em troca da aquisição incremental de outros bens com cada $1 recebido como pagamento pelos fatores. O ensino, portanto, dos fenômenos da demanda e da produção deve ser baseado no trinômio escassez-escolha-custo e na ideia de conjunto de oportunidade (“opportunity set”), tal como fazem Arnold Harberger, George Stigler, Gary Becker, Lionel Robbins, Armen Alchian e todos aqueles que tanto contribuíram para o esclarecimento dos fundamentos da Teoria Econômica. Gary Becker é explícito no uso do termo opportunity set, mas todos os demais claramente o tiveram em mente em tudo que escreveram.
O estrago que uma má tradução como essa causa é imenso. Os estudantes simplesmente não conseguem aprender o que é escassez, pois são induzidos a pensar que o “surplus” ou excesso, indicado no gráfico, é o contrário de escassez. Já ouvi de um professor de famosa instituição, mais de uma vez, que escassez é uma “fantasia neoclássica”, pois no mundo havia “abundância” de bens, restando apenas redistribuí-los. Ora, se os bens são abundantes, por que os preços são positivos? Isso ele nunca explicou e duvido que algum dia o faça sem recorrer à escassez.
Para haver abundância, não basta que a quantidade total disponível do bem seja maior que aquela quantidade total requerida para satisfazer os demandantes. Isso é o que o termo “surplus” significa no gráfico: “excesso de quantidade ofertada em relação à demandada ao preço P1”. Não se deve confundir abundância com surplus, pois mesmo quando há excesso a determinado preço existe escassez . (O termo “surplus” é, aliás, equívoco, pois também pode significar outras coisas, o que já é outra fonte de confusões). É preciso que, ao entendermos os preços como valorações marginais relativas, todos os agentes atribuam valor marginal nulo a unidades adicionais do bem para que ele seja considerado abundante, pois, do contrário, alguém estará disposto a sacrificar o consumo de outros bens em troca da unidade adicional desse bem. Mesmo que a quantidade disponível do bem seja maior que a quantidade total que atenda a todos os demandantes, se essa quantidade só estiver disponível em Sumatra, as pessoas deverão incorrer em escolhas e sacrifícios para trazer o bem até onde vivem e, assim, o bem terá preço positivo, ou seja, não será escasso.
Quando um colega como esse ensina a seus alunos que não existe escassez no mundo, ele ensina aquilo que não entende (e teima em criticar, ao ponto de reduzir o espírito crítico ao deboche), o que temos é a reprodução da pseudo-crítica ao mainstream. Além de não entenderem aquilo que condenam, valem-se de sua retórica para galgarem os degraus da admiração intelectual de alunos que entendem menos ainda. E aí está criada a bolha da intelligenza tupiniquim. Nem Roberto Campos fazia ideia de como estão acabando com o Brasil.