TERTULIANO E A HIPOCRISIA SOCIAL
(Rodrigo Peñaloza, 29-VII-2019)
É inerente à hipocrisia social a contradição do hipócrita, que não se peja em desprezar aquele de cujo suor se beneficia. Vemo-la em todos os tempos e ubiquamente, até mesmo nestas paragens brasílicas, pela pena daqueles que nada contemplam nas arenas da luta senão o palco do palhaço da vez.
Tem sido assim desde sempre: o desprezo não é privilégio de poucos. Os gladiadores eram simultânea e contraditoriamente amados e odiados pela sociedade romana. Ela os via como os seres desprezíveis que lhe proporcionavam a satisfação do espetáculo grotesco. Damas patrícias não se recusavam ao despudor de lhes explorar o sexo e pelo suor engarrafado, tido como afrodisíaco, pagavam fortunas. Sob o nível pessoal da hipocrisia reinava a inconsciente cumplicidade coletiva, por meio da qual a violência do espetáculo nos limites internos do circo lhes purgava aos romanos o pavor que tinham da barbárie a lhes circundar o Império.
Tertuliano registrou sua repulsa a essa contradição, chamando-a pelo nome que verdadeiramente lhe cabe: hipocrisia. Diz ele em De Spectaculis, 22.3:
“Quanta perversidade! Amam a quem castigam, depreciam a quem aplaudem, exaltam a arte, maculam o artista” (Quanta perversitas! Amant quos multant, depretiant quos probant, artem magnificant, artificem notant).
Tertuliano escreveu para os cristãos, para sua comunidade, não para o mundo. Não enviou sua indignação ao povo romano, à plebe ou aos patrícios, mas àqueles com quem detinha o privilégio da conversa sã e do entendimento mútuo. Não o fez somente pela segurança dos seus, mas pela certeza de que a indignação teatral, aquela que se levanta em razão do aplauso da multidão, é mera vaidade. Não escreveu sequer para os romanos que, como ele, também se indignavam com a hipocrisia. Se fosse contemporâneo de Sêneca, tampouco lhe teria escrito.
Os gladiadores não morriam aos borbotões como nos mentem os filmes. Afinal, eram caros. Entretanto, tinham entre si um código de honra, o amor da família, uma honestidade comovente, se apenas lhes apreciássemos a alma. O mal estava em ser cristão e ainda assim se render à violência da hipocrisia. Em tendo conhecido a Verdade, ainda assim se entregar aos falsos prazeres do mundo. Quem morria nos espetáculos não era o gladiador. Quem morria era o espectador: morria-lhe a cada grito histérico um pouco da sua Humanidade. Aos gladiadores bastaram-lhes os seus epitáfios. Que Deus tenha deles misericórdia e que sobre todos paire a Justiça.