Um pouco sobre escassez
“Bem econômico é o nome técnico para bem escasso. Um bem é escasso para alguém se, e somente se, essa pessoa prefere ter mais desse bem do que já tem. (...). Se um bem, não importa quão desejado, é tão abundante que a pessoa sequer queira mais dele, então esse bem é um bem livre (free good)"”. - Armen Alchian & William Allen, University Economics, ch. 3.
A escassez é inevitável. É por causa dela que existe a Economia. O que caracteriza o bem livre é o fato de que uma unidade adicional do bem não acrescenta valor. Isso significa que a pessoa não está disposta a sacrificar consumo de outros bens em troca dessa unidade adicional. É, portanto, um conceito de natureza marginalista, como tudo que na Economia diga respeito a valor e preço.
Outro ponto a ser compreendido é que tanto a escassez como a abundância são conceitos relativos não só em termos de bens alternativos (como dito acima), como também são conceitos relativos à pessoa. O ar puro pode ser um bem abundante para o índio da Amazônia, no sentido de que ter mais ar puro do que já tem não fará para ele a menor diferença. Reciprocamente, ter um pouco menos de ar puro tampouco fará a menor diferença. Isso se traduz matematicamente pelo multiplicador de Lagrange sendo igual a zero. Porém, o ar puro é um bem escasso para o morador de Pequim ou de Santiago do Chile durante o inverno. Tanto é verdade, que, para despoluir o ar, restringe-se a circulação de certos veículos em certos dias da semana. A sociedade está, assim, disposta a sacrificar o conforto da locomoção em troca de ar menos poluído.
Se ocorrer de um bem ser abundante para todas as pessoas, então deixa de ser um bem econômico. De fato, se alguém para quem o ar puro seja abundante quiser empacotar ar puro para vender a quem demanda, não encontrará comprador. E mesmo que apenas possa consumir para si a unidade adicional, não o fará, por definição. Imagine, porém, que de fato existe um fulano que demande ar puro. Então o índio para quem o ar é abundante ainda assim terá de sacrificar recursos (outros bens) para empacotar o ar puro e vendê-lo a fulano. Isso só valerá a pena se o valor que fulano atribui ao pacote de ar puro (ou seja, o quanto ele está disposto a sacrificar de outros bens) pelo menos compensar o valor que o índio atribui aos recursos sacrificados. Logo, não é a abundância de um bem para alguém que gera excedentes de troca, mas essa abundância combinada com a escassez para outra pessoa. Portanto, a abundância, mesmo quando exista para alguma pessoa, não é suficiente para gerar valor. É preciso haver escassez, esta sim a condição necessária. Além disso, a troca entre o índio e o fulano depende integralmente das valorações marginais que eles atribuem aos respectivos recursos sacrificados, não ao bem abundante. Essa diferença vantajosa entre taxas marginais de troca é o que promove o comércio, desde que os agentes se encontrem (para isso é preciso informação, o que já bastaria para termos escassez). Essa é a manifestação do que em Teoria econômica se denomina arbitragem. Matematicamente, os vetores de preços compatíveis com a arbitragem formam o que se denomina “cone de preços”, que é o nome economês do conceito matemático de “subdiferencial”, um termo estudado em Análise Convexa. Faço essas conexões com a Matemática apenas para mostrar que é a Matemática que reproduz em termos analíticos a lógica econômica, não o contrário. Ninguém precisa saber diferencial de Frechet ou de Gâteaux em espaços de Banach pra entender que vale a pena comprar barato e vender caro.
A escassez é o fundamento da Teoria Econômica. Sem o entendimento dessa realidade inerente à natureza humana e às limitações que a Natureza nos impõe, não pode haver nem Economia nem economista que se ouse chamar de “economista”.
Pra quem acha que a escassez não passa de uma grande bobagem, basta refletir com honestidade intelectual sobre a incerteza que atinge a todos, e tanto mais quanto maior o horizonte de tempo que se considera. Só com isso temos escassez. Tempo, incerteza, informação: três palavrinhas-chave com as quais Georgescu-Roegen, um dos maiores economistas de todos os tempos, escreveu uma das maiores obras-primas no século XX. Esses economistas merecem respeito. Nossos estudantes também merecem.
No entanto, a palavra-chave que jamais deve estar ausente em nossa concepção de escassez é: sacrifício. Se, para obter mais de um bem, você tiver que e estiver disposto a sacrificar algo, então aquele bem é escasso, não importa quão grande seja sua quantidade disponível.