Valor e preço só são iguais na margem

Rodrigo Peñaloza
5 min readDec 4, 2023

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Figura: Armen Alchian e William Allen, capítulo 5 de University Economics.

Fiz este texto para esclarecer uma confusão que vejo com muita frequência sobre o conceito de valor em Economia. Tem gente que usa o produto V=PQ (o preço de mercado vezes a quantidade transacionada) como medida do valor de um bem X, para levantar questões como “valor maior de um bem”. Isso não tem sentido. Chame esse V=PQ de “suposto valor”. É fácil ver que os excedentes totais de troca não têm qualquer relação com V e que, além disso, esse termo V cai no erro de fazer comparações interpessoais de utilidade.

Suponha que há 4 consumidores (A, B, C e D) com valorações marginais de $40, $30, $25 e $22, respectivamente, pela unidade de um bem X e que há 4 produtores (a, b, c e d) com valorações marginais (custos marginais) de $10, $15, $25 e $40. Suponha, apenas para efeitos didáticos, que cada consumidor demanda uma única unidade do bem e que cada produtor produz uma única unidade. Então a quantidade de equilíbrio é de Q=3 unidades e o preço é P=$25.

É costume dizer que V=PQ é o “valor” do bem X. No exemplo, V=$75. Administradores gostam de usar esse termo nesse sentido, mas economistas não deveriam desconhecer o seu nonsense econômico.

Esse termo “valor” usado nessa circunstância (V=PQ) não tem significado econômico algum e não corresponde ao conceito correto de valor como “valoração marginal”. De fato, o preço de $25 por unidade corresponde à valoração marginal do consumidor marginal, C, aquele que está indiferente entre participar do mercado ou não, pois $25, sendo sua valoração marginal de X, denota o quanto ele está disposto a sacrificar de consumo de outros bens em troca dessa unidade de X que ele compra no mercado. Ao mesmo tempo, o produtor c incorre num custo marginal de produção de $25 e está também indiferente. São esses agentes marginais (C e c) que determinam o preço de $25. Se você multiplica o preço de $25 pelo total de unidades comercializadas no mercado, Q=3, você está atribuindo, ERRADAMENTE, a valoração marginal de C (da unidade que ele compra) aos consumidores A e B (que compram as outras duas unidades), o que não tem sentido, pois A valoriza o bem em $40 e B em $30. O mesmo erro ocorrerá se você considerar o lado da oferta do bem.

Valor só tem sentido na margem. Quando observamos o preço de mercado P=$25 do bem X, esse preço reflete a valoração marginal dos agentes que estão, na prática, indiferentes entre participar do mercado ou não. Ao participarem, esses agentes recebem excedentes nulos.

Agora chegamos ao termo “excedente:. O consumidor A valoriza sua unidade em $40, mas paga $25. Portanto, seu excedente é $15. O consumidor B valoriza em $30 e paga $25, de modo que ele tem excedente igual a $5. O consumidor C valoriza em $25 e paga $25. Logo, tem excedente nulo. O excedente total dos consumidores é a soma desses excedentes individuais, ou seja, CS=$20.

Quanto à oferta, o produtor a tem custo marginal de $10 e vende a $25, de forma que seu excedente é $15. O produtor b paga $15 e recebe $25, de modo que seu excedente é $10. O produtor c tem excedente nulo, pois paga $25 e recebe $25. Logo, o excedente total dos produtores é $25.

O excedente total do mercado é soma dos excedentes totais dos consumidores e produtores, ou seja, TS=$45 (total surplus). Compare com V=$75.

O problema é que não há como saber as valorações marginais de A, B, a e b, pois só o que observamos no mercado são o preço P=$25 e a quantidade total comercializada no período, Q=3. No exercício acima em que calculei o excedente total de TS=$45, esse cálculo tem natureza didática, serve para entendermos o conceito de excedente da troca. Essas valorações marginais dos agentes A, B, a e b (chamados de agentes inframarginais) não são observáveis, pois são subjetivas. Só o que podemos dizer é que a valoração marginal mais baixa ainda compatível com a oferta é de $25 e que o custo marginal mais alto ainda compatível com a demanda é de $25.

Quando Arnold Harberger postulou os seus princípios fundamentais da análise de bem-estar, ele os postulou para determinar aproximações lineares de primeira ordem das variações de preços. Não foi para determinar o valor total de um bem, porque isso não tem sentido. O terceiro dos postulados de Harberger é que podemos somar algebricamente (cardinalmente) as variações de excedente individuais, o que pressupõe preferências quase-lineares, de forma que as variações de excedentes venham expressas monetariamente. Isso é um exercício elementar de teoria do consumidor com preferências quase-lineares. Fora disso, tudo mais é avaliação ordinal. Ao avaliarmos os efeitos de bem-estar de variações de preços (decorrentes de impostos, subsídios, tarifas, quotas etc.), estamos avaliando na margem, e toda agregação se faz sob condições conhecidas.

Compare o excedente total TS=$45 com V=$75. Ele é menor que o suposto valor V. Imagine agora que os agentes A e B não mais têm valorações marginais de $40 e $30, mas sim de $60 e $45. Suponha ainda que os ofertantes a e b não mais têm custos marginais de $10 e $15, mas de $1 e $4. C e c continuam com suas valorações marginais de $25. Então, refazendo as contas, o preço de equilíbrio continua sendo P=$25 e a quantidade de equilíbrio continua sendo Q=3, de forma que o suposto valor continua sendo V=$75, mas o excedente total agora é de TS=$100 (que vem da soma: 35+20+24+21), ou seja, o excedente total agora é maior do que o suposto valor V.

Logo, o valor V=PQ não diz NADA em termos econômicos no que concerne a valor. Quando você diz que um bem tem mais valor agregado apenas pelo fato de que você, mediante uma ação econômica (digamos, uma produção mais capital-intensiva e mais produtiva) consegue elevar V de $75 pra $100, melhor que qualquer outra alternativa, você não está usando o conceito correto de valor econômico! Você está usando um termo contábil, mas que não pode ser usado para atribuir a um bem qualquer ideia de valor que deva (ou possa) ser explicada economicamente!

Não se pode admitir que economistas confundam valor com preço. Valor=preço apenas NA MARGEM. O significado disso está claro no exemplo acima, nas figuras dos agentes marginais C e c. E mais: não é compreensível que economistas confundam o conceito correto de valor, que é de natureza marginal, com um termo contábil sem qualquer significado econômico, já que esse termo contábil não tem qualquer relação com a magnitude dos excedentes totais, senão pela última unidade comercializada. Ao fazer isso, isto é, ao usar o preço de $25, que é a valoração marginal dos agentes C e c, para multiplicar pela quantidade total Q=3, ou seja, incluindo os agentes A, B, a e b, você está fazendo comparações interpessoais de utilidade. Você está usando a valoração marginal pessoal de C para avaliar as unidades consumidas por A e B. A única relevância econômica da expressãp V=PQ reside em seu papel no cômputo da receita marginal.

Isso é tão básico, que Armen Alchian e William Allen já alertam sobre isso no capítulo 5 de University Economics. Minha menção ao Alchian neste parágrafo final é para fazer a propaganda do livro. Para o bem dos profissionais de Economia deste país, essa leitura é fundamental.

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Rodrigo Peñaloza
Rodrigo Peñaloza

Written by Rodrigo Peñaloza

PhD in Economics from UCLA, MSc in Mathematics from IMPA, Professor of Economics at the University of Brasilia.

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